Caso Isabella: o “fato-ônibus”

Semestre passado, cursei na faculdade um seminário temático cujo tema era a mídia ao longo da História. A cadeira encerrou-se com um trabalho de análise sobre o filme “O Quarto Poder” – do consagrado diretor Constantin Costa-Gavras – feito com base em uma obra fundamental para se entender a televisão e sua lógica de funcionamento: “Sobre a Televisão”, de Pierre Bourdieu.

O filme de Costa-Gavras mostra como um simples incidente pode tornar-se um espetáculo midiático. No caso, o ex-segurança de um museu da cidade de Madeline, Sam Baily (John Travolta) busca recuperar seu emprego, mas levara uma espingarda para ameaçar a diretora do museu e acidentalmente atirou, acertando um segurança. Max Brackett (Dustin Hoffman) fazia uma reportagem sem importância no museu, e no momento do tiro estava no banheiro, quando percebeu a chance de retomar à sua antiga fama, cobrindo o incidente em uma posição privilegiada: junto ao acontecimento. Havia notícias mais importantes a serem dadas – como um escândalo de corrupção – mas todas as emissoras passaram a priorizar “o drama do museu”: a concorrência, tão exaltada pelos defensores do “livre mercado”, serviu para homogeneizar as informações, e não para oferecer alternativas aos telespectadores. E além disso, o tom da cobertura televisiva influenciava muito a “opinião pública” sobre o fato: no princípio do caso, com Brackett apresentando Baily às câmeras como um desempregado que tinha uma família para sustentar, as pessoas viam o ex-segurança com simpatia; quando o foco passara a ser as crianças que ele havia tomado como reféns (e vale lembrar que foi Brackett que orientou Baily a transformar o incidente em um seqüestro, com exigências à polícia para libertar os reféns), a “opinião pública” mudou de lado. E a mudança do teor na cobertura se dava em todas as emissoras, não apenas em uma.

Tal drama é o que Bourdieu chama de “fato-ônibus”. São as notícias de variedades (onde se encaixam os dramas), que “interessam a todos” sem terem maiores conseqüências – em “O Quarto Poder” elas seriam maiores do que o esperado, mas o que a mídia buscava era o índice de audiência, nada a mais. Diz Bourdieu que “quanto mais um órgão de imprensa ou um meio de expressão pretende atingir um público extenso, mais ele deve perder suas asperezas, tudo o que pode dividir, excluir”¹.

Pois bem, e onde entra o “caso Isabella”? Vejam bem: percebe-se que a cobertura da mídia tem-se esforçado em pintar o pai e a madrasta como culpados da morte da menina. Em qualquer canal de televisão, o telespectador terá informações sobre o fato, que o levam a pensar que o crime já está solucionado: o pai e a madrasta são assassinos. Vejam bem: não quero dizer que eles não sejam culpados, mas antes mesmo da polícia chegar a uma conclusão a mídia induz as pessoas a pensarem nisto. Não há espaço para o contraditório neste caso.

E tem mais: Isabella Nardoni era filha da classe média. Tradicionalmente, quando algum membro da classe média é vítima da violência, a televisão manda a ética para o espaço e super-explora o crime de modo a aumentar sua audiência. Com a mídia martelando, dificilmente as pessoas não sabem do caso e não têm uma opinião – em geral coincidente com a apresentada implicitamente pela mídia. No caso da Isabella: é difícil não se ouvir pessoas dizerem “como é que pode um pai fazer isto com sua filhinha?” (reparem que a polícia ainda nem chegou à conclusão sobre quem matou a menina!), ou mesmo repetirem o velho brado “tem que matar um cara desses!”.


(charge do Kayser)

Reparem que existem muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo no Brasil, mas a mídia dá destaque ao “caso Isabella”. É a lógica do “ocultar mostrando”, da qual Bourdieu fala: mostra-se muito uma coisa, e assim deixa-se de mostrar outras que poderiam ser importantes. E assim todos ficam fissurados pelo “caso Isabella”, e quem não sabe é tratado como “alienado”. Meu irmão estranhou a capa da IstoÉ desta semana, que mostrava – é claro! – a Isabella, e minha mãe respondeu na hora: “Mas como tu não sabe?”, como se o assassinato da menina fosse mais importante para nós do que, por exemplo, a poluição do Guaíba.

Deste modo, a mídia acaba influenciando nas discussões cotidianas, gerando uma “comoção geral”. No momento, é a Isabella. Ano passado, tivemos o acidente da TAM – quando todo mundo falava sobre aviação, “grooving”, reverso etc., e no fim “a culpa era do Lula” – e o “caso João Hélio”, um crime “bárbaro” cometido por menores de idade – ótimo para se defender pena de morte e redução da maioridade penal, toda hora se falava disso na televisão!

Clique aqui para ler uma ótima crítica do antropólogo Roberto Albergaria à cobertura midiática do caso. E leia também o que o Valter escreveu no Moldura Digital a respeito do assunto.

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¹ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 63.

9 comentários sobre “Caso Isabella: o “fato-ônibus”

  1. Pô Rodrigo achei q tu ia escrever sobre o Grêmio e a mais nova epopéia do imortal: a de ser eliminado duas vezes na mesma semana e dentro de casa. Tá mais eficiente q o BBB hein?! KKK
    Vai rolar DVD de mais essa façanha? KKK
    Te cuida no Brasileirão hein!? KKK

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  3. Nunca vi alarde grande assim para pressionar políticos. No caso do mensalão, quantas pessoas fizeram plantão na frente da casa do Genoíno, por exemplo. Bando de hipócritas.

  4. Oi Rodrigo muito bom seu texto. Concordo plenamente com ele, e acho que temos que enfatizar ,cada vez mais o investimento do grande, médio e pequeno poder midiático para a massificação das pessoas.
    Vamos lá!

  5. É para distrair, Rodrigo. Os noticiários são feitos para isso, para se comprarem notícias.
    Quem quer saber de política? Da poluição?
    Já que o BBB acabou, vamos assistir esse de vida real e ver quem vai para o paredão.
    Beijos
    Clem

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