O “mea culpa” que mais espero

Muito se cobra a esquerda (em especial o PT) para que faça uma autocrítica. Concordo tanto que inclusive gosto de lembrar que boa parte das pessoas que conheço de tal lado do espectro político já a fez. Eu mesmo venho fazendo há muito tempo.

Os governos de centro-esquerda do PT cometeram muitos erros, ainda que isso não apague seus acertos, que foram em muito maior número. Milhões de pessoas saíram da pobreza extrema (agora infelizmente estão voltando a ela por culpa de decisões tomadas nos últimos cinco anos) por conta de políticas de inclusão social promovidas pelas administrações petistas, foram abertas muitas universidades país afora, e na política externa o Brasil foi respeitado como poucas vezes em sua história (em compensação, agora…). Da mesma forma que as opiniões lamentáveis sobre política e a clara decadência do futebol do Grêmio nos últimos dois anos não me fazem querer “cancelar” Renato Portaluppi, que como jogador ganhou a Libertadores e o Mundial (com direito a marcar os dois golaços da vitória) em 1983; como treinador, tirou o clube de uma fila de 15 anos sem títulos de peso em 2016 ao vencer a Copa do Brasil, e em 2017 ganhou mais uma Libertadores, a terceira da história gremista. (Achei boa a saída, tanto para o próprio Renato como para o Grêmio.)

O “senso comum” associou o PT à “corrupção”, e considero um erro enorme que o partido não tenha agido com firmeza contra ela. Outro, tão grande e que teve o primeiro como uma de suas consequências, foi a política de alianças pela “governabilidade”, visto que era preciso ter uma forte base aliada no Congresso e a esquerda não tinha maioria. Foi ela que nos “legou” Michel Temer, ainda que isso não justifique a traição dele, que conspirou para virar presidente aliado a quem perdeu nas urnas em 2014.

Quem precisa ainda mais fazer autocrítica é a direita liberal – algo do que já falei aqui. Em especial, no tocante a algo que aconteceu há exatos cinco anos: a infame votação do impeachment na Câmara dos Deputados em 17 de abril de 2016, que mais adiante colocaria Temer na presidência. Foi um show de horrores digno de um livro de Stephen King. E que só aconteceu porque os derrotados de 2014 resolveram ganhar no “tapetão”, cansados de perder eleições.

Considerando a crise econômica na qual o Brasil estava entrando e o desgaste natural do PT após tanto tempo no governo, o mais provável é que, se não resolvessem tirar Dilma Rousseff na marra da presidência, em 2018 a oposição liderada pelo PSDB venceria com facilidade. Talvez com Aécio Neves (que quase ganhou em 2014), talvez com Geraldo Alckmin (com mais base eleitoral por ser de São Paulo). Jair Bolsonaro? Acredito que nem se candidataria: sem apoios de peso para sua candidatura, dificilmente abriria mão da mamata de ser deputado (desde 1991) sem fazer nada de útil pelo país.

Com a opção golpista, a direita liberal que a eleição de 2014 manteve na oposição passou a ser governo em 2016, sem votos. Virou também “vidraça”, levando as “pedradas” que o PT levaria sozinho até 2018 caso continuasse no comando do país. O resultado disso, somado à Operação Lava-Jato (que fez boa população da população achar que “político nenhum presta”), foi a eleição de Bolsonaro à presidência, que conseguiu engambelar uma penca de gente dizendo ser “contra tudo o que está aí” e com apoio (mesmo que em alguns casos só no segundo turno) de quem conspirou pela queda de Dilma pois, afinal, “PT nunca mais”. O PSDB, que se tivesse respeitado as regras provavelmente teria sido o vencedor de 2018, viu Alckmin não receber 5% dos votos após dois mandatos consecutivos como governador de São Paulo, ambos conquistados com vitórias em primeiro turno.

Quando se confirmou o que qualquer pessoa bem informada sabia – ou seja, que Bolsonaro não tinha a menor condição de governar o país – boa parte de quem o apoiou “contra o PT” começou a “tirar o corpo fora”, culpando a esquerda – e não seus votos equivocados – pela eleição do pior presidente da história do Brasil. E dê-lhe pedidos de “autocrítica” para quem tanto avisou em 2018 que, ora bolas, não era boa ideia colocar no Palácio do Planalto alguém que defende torturadores, agressões a homossexuais e salários menores a mulheres “pois engravidam”.

Desculpem, mas essa fatura não é nossa. Afinal, não fomos nós que digitamos “17” na urna eletrônica. (Aliás, dois algarismos que em sequência formam o placar daquele famoso Brasil x Alemanha: um bom sinal de que seria motivo de vergonha para o país, mas que nesse caso é bem maior pois na Copa do Mundo era só futebol.)

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Como foi possível?

Já se passaram dois anos da eleição, e ainda fico pasmo ao pensar que mais de 57 milhões de pessoas escolheram Jair Bolsonaro para ser o presidente do Brasil. Até mesmo gente de direita que eu considerava sensata não viu nada de errado votar em alguém como ele só para derrotar o PT.

As atitudes dele na pandemia estarrecem, mas são apenas “mais do mesmo”. Ele sempre foi essa pessoa perversa. Bastava uma rápida pesquisa no Google para saber. A única coisa que mudou é que, como presidente, Bolsonaro tem um poder que não tinha como deputado.

Já vi gente de direita me questionar se contra Bolsonaro eu votaria em um candidato de tal lado do espectro político (SPOILER: já estou pronto para votar em João Doria em um eventual segundo turno contra “a coisa” em 2022) ou anularia o voto como fiz em 2016, quando teria de escolher entre Sebastião Melo (MDB) e Nelson Marchezan Júnior (PSDB) para prefeito de Porto Alegre no segundo turno, e digitei 71 ao invés do 15 ou do 45. Bom, já no primeiro ano da gestão tucana me arrependi de minha opção mesmo que meu voto sozinho não mudasse o resultado da eleição: se por um lado eu não tinha consentido com a vitória do PSDB, também não fizera nada contra ela mesmo que fosse preciso votar em outro candidato do qual não gostava.

Então, veio 2018, e eis que o segundo turno para governador do Rio Grande do Sul repetiu o duelo entre MDB e PSDB. Inicialmente hesitei, mas depois decidi pela primeira vez na minha vida digitar o 45 em uma urna eletrônica, votando em Eduardo Leite contra José Ivo Sartori. Sabia que discordaria da maioria esmagadora das decisões de Leite, mas também achava inaceitável a ideia de que um governo lamentável (para dizer o mínimo) como o de Sartori pudesse merecer mais quatro anos. E a covid-19 me deu a certeza de que não me equivoquei: acho que o governo Leite cometeu falhas – faltam testes e o Distanciamento Controlado precisava ser muito mais rigoroso do que é – mas não tenho dúvidas de que estaríamos vivendo um completo caos caso o resultado eleitoral tivesse sido outro, ainda mais que o negacionista Osmar Terra é do mesmo MDB de Sartori e não duvido que fosse nomeado para a Secretaria da Saúde, o que levaria o Rio Grande do Sul a ser um dos piores lugares do mundo para se morar durante a maior pandemia dos últimos 100 anos.

Ou seja: eu já votei em um candidato do qual discordava por não querer um pior. E isso que nem era uma diferença tão grande assim como a que se via na campanha presidencial daquele mesmo ano, que não era uma mera disputa entre dois projetos: era civilização contra barbárie. E a maioria, ou iludida com correntes no WhatsApp ou raivosa, optou pela barbárie…

Mas, será que era tanta ilusão assim? Não tinha como saber que seria um desastre?

O vídeo abaixo é de antes da eleição.

Não era uma escolha muito difícil. Não foi por falta de aviso.

Era só pesquisar no Google, porra.

Quem precisa de autocrítica?

Nos últimos tempos tem-se falado muito sobre a necessidade da esquerda brasileira fazer uma autocrítica acerca de seu passado recente. A cobrança maior recai sobre o PT, maior partido brasileiro deste campo do espectro político.

Concordo que haja tal necessidade e inclusive lamento que a autocrítica praticamente não tenha ocorrido mais de três anos após o golpe travestido de impeachment em 2016 e a consequente eleição de Jair Bolsonaro para a presidência. Porém, há um outro ponto importante, sobre o qual pouco se fala: e a autocrítica dos liberais, quando será feita? Pois não podemos esquecer que eles têm a maior culpa pela situação atual.

Seu candidato na eleição presidencial de 2014, o então senador Aécio Neves (PSDB), foi derrotado por estreita margem. Tal resultado (48,36% dos votos válidos, contra 51,64% para a reeleita Dilma Rousseff) indicava que o PSDB, como principal partido da oposição, chegaria forte em 2018 para a sucessão de Dilma. Ainda mais que ela iniciaria seu segundo mandato com a economia claudicante e com a rejeição ao PT em uma crescente.

Porém, o PSDB e seus aliados optaram pelo caminho do golpismo. Um dia após o encerramento do processo eleitoral, já havia gente falando em impeachment e convocando manifestações (que começaram a ocorrer, ainda que pequenas, já no final de 2014), com pouquíssimas vozes oposicionistas manifestando contrariedade a isso. Em seu retorno ao Senado, Aécio prometeu oposição “incansável e instransigente” ao governo recém reeleito. E para completar, houve o pedido de auditoria nas urnas eletrônicas, insinuando uma fraude que a própria verificação provou não ter ocorrido – mas que contribuiu para não se virar a página de uma virulenta campanha eleitoral.

Tanto insistiram que o impeachment veio em 2016, com uma justificativa duvidosa: as tais “pedaladas fiscais”, que nunca tinham motivado a perda de mandato de nenhum governante anterior, agora eram “crime de responsabilidade”. Mas não foi apenas uma troca de presidente: a oposição se aliou ao vice-presidente Michel Temer e voltou ao governo “pela porta dos fundos” ao invés de esperar até 2018, quando provavelmente triunfaria nas urnas e entraria no Palácio do Planalto pela “porta da frente”, subindo a tradicional (e simbólica) rampa.

O resultado disso é que quem viria forte em 2018 virou “vidraça” por ter se tornado governo (por sinal, péssimo) antes da hora. Quem virou oposição – o PT e seus aliados à esquerda – foi também culpabilizado pelo desastre (“quem votou na Dilma votou no Temer”, lembram?). O resultado é que a soma de insatisfação com o irracional antipetismo nos conduziu à eleição (ainda que mediante o uso de incontáveis mentiras) de um sujeito que está jogando a imagem do Brasil na lama e nos envergonhando dia sim, dia também.

A esquerda – e em especial o PT – cometeu muitos erros, os quais nem vou elencar, por isso prefiro falar apenas da campanha eleitoral de 2018. Penso que o ideal teria sido o PT abrir mão de ser cabeça de chapa: alguém acreditava que deixariam Lula ser candidato quando condenaram ele sem provas justamente para prendê-lo e impedi-lo de disputar – e provavelmente vencer – a eleição? Mas, cometido o primeiro erro, e com Fernando Haddad concorrendo no lugar de Lula e indo ao segundo turno, penso que qualquer pessoa que diga defender a democracia deveria ter apoiado o petista incondicionalmente contra alguém que nunca escondeu sua admiração pela ditadura de 1964 e seus enojantes métodos. Sim, isso é um recado a Ciro Gomes (em quem votei no primeiro turno e que encerrada a primeira votação saiu de férias) mas também – e principalmente – aos autoproclamados liberais, muitos dos quais não hesitaram em apoiar Bolsonaro (que nunca foi liberal) e agora se dizem arrependidos e – incrivelmente – decepcionados com alguém que como presidente não está sendo nem um pouco diferente do que foi em 28 anos como deputado.

Quero muito a autocrítica da esquerda, sim. Mas quero ainda mais a da direita liberal, principal responsável por nos jogar no abismo atual.

Consciência tranquila

Em 19 de julho de 2007, Luis Fernando Verissimo teve publicada em vários jornais uma excelente crônica, que “norteará” minhas palavras. Vamos a ela.

Cumplicidade

Uma comprida palavra em alemão (há uma comprida palavra em alemão para tudo) descreve a “guerra de mentira” que começou com os primeiros avanços da Alemanha nazista sobre seus vizinhos. A pouca resistência aos ataques e o entendimento com Hitler buscado pela diplomacia européia mesmo quando os tanques já rolavam se explicam pelo temor comum ao comunismo. A ameaça maior vinha do Leste, dos bolcheviques, e da subversão interna. Só o fascismo em marcha poderia enfrentá-la. Assim muita gente boa escolheu Hitler como o mal menor. Ou, comparado a Stalin, o mau menor. Era notório o entusiasmo pelo nazismo em setores da aristocracia inglesa, por exemplo, e dizem até que o rei Edward VIII foi obrigado a renunciar não só pelo seu amor a uma plebéia mas pela sua simpatia à suástica. Não tardou para Hitler desiludir seus apologistas e a guerra falsa se transformar em guerra mesmo, todos contra o fascismo. Mas por algum tempo os nazistas tiveram seu coro de admiradores bem-intencionados na Europa e no resto do mundo – inclusive no Brasil do Estado Novo. Mais tarde estes veriam, em retrospecto, do que exatamente tinham sido cúmplices sem saber. Na hora, aderir ao coro parecia a coisa certa.

Comunistas aqui e no resto do mundo tiveram experiência parecida: apegarem-se, sem fazer perguntas, ao seu ideal, que em muitos casos nascera da oposição ao fascismo, mesmo já sabendo que o ideal estava sendo desvirtuado pela experiência soviética, foi uma opção pela cumplicidade. Fosse por sentimentalismo, ingenuidade ou convicção, quem continuou fiel à ortodoxia comunista foi cúmplice dos crimes do stalinismo. A coisa certa teria sido pular fora do coro, inclusive para preservar o ideal.

Se esses dois exemplos ensinam alguma coisa é isto: antes de participar de um coro, veja quem estará do seu lado. No Brasil do Lula é grande a tentação de entrar no coro que vaia o presidente. Ao seu lado no coro poderá estar alguém que pensa como você, que também acha que Lula ainda não fez o que precisa fazer e que há muita mutreta a ser explicada e muita coisa a ser vaiada. Mas olhe os outros. Veja onde você está metido, com quem está fazendo coro, de quem está sendo cúmplice. A companhia do que há de mais preconceituoso e reacionário no país inibe qualquer crítica ao Lula, mesmo as que ele merece.

Enfim: antes de entrar num coro, olhe em volta.

O texto foi escrito no auge do “caos aéreo”, época em que, como bem disse LFV, era grande a tentação de vaiar o então presidente Lula. Na antevéspera do dia em que a crônica foi publicada, aconteceu o desastre com o voo da TAM no Aeroporto de Congonhas, que a direita tentou usar para derrubar Lula mas resultou em fiasco (algumas manifestações convocadas sequer reuniram uma dezena de pessoas). E seis dias antes do texto, o presidente fora muito vaiado na cerimônia de abertura dos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro, dando a impressão de que seu governo era muito impopular – não podia haver impressão mais falsa.

Quando Verissimo fala “A companhia do que há de mais preconceituoso e reacionário no país inibe qualquer crítica ao Lula, mesmo as que ele merece”, aparentemente cai em contradição, considerando o teor de seu texto. Afinal, ele fala justamente em “cumplicidades”, citando dois excelentes exemplos (a falta de condenação à Alemanha nazista por parte de França e Inglaterra por ser considerada por eles “o mal menor” em comparação à União Soviética, e a fidelidade cega de muitos comunistas à URSS mesmo já sabendo que o stalinismo era um total desvirtuamento do ideal marxista). Logo, seria correto simplesmente apoiar Lula de forma acrítica, mesmo que houvesse muita coisa a ser criticada? Bom, o próprio texto, como um todo, diz que não.

O que depreendo da leitura é que criticar Lula (e também Dilma) não pode ser confundido com entrar no coro da direita. Pois eu critico a falta de regulação da mídia em 12 anos de governo (e considero verdadeira “síndrome de Estocolmo” o financiamento de publicações como a Veja por meio de anúncios estatais), a falta de atenção às questões indígena e ambiental, a capitulação frente aos fundamentalistas religiosos (como se viu no episódio da suspensão da distribuição do kit anti-homofobia nas escolas), a “acomodação” do PT (desejava muito que o partido se esforçasse em aumentar sua bancada parlamentar de modo a depender menos ou mesmo poder abrir mão do PMDB para conseguir governar), e poderia citar outras discordâncias que tenho sem me ver ao lado das forças reacionárias. Pois a turma do “acorda Brasil” acha que regular a mídia é censura (a Inglaterra virou ditadura, pelo visto), que índio é vagabundo e ecologista é ecochato, que atender a pautas LGBT implantará uma “ditadura gay”, que descriminalizar o aborto e as drogas causará a morte de milhões de bebês e obrigará os sobreviventes a fumarem maconha, que cotas são racismo (e não o contrário, uma medida paliativa contra ele), que Bolsa Família é “sustentar vagabundo”, que a ditadura de 1964 foi boa para o Brasil por ter impedido uma “ditadura comunista”, dentre outras barbaridades.

Então chegamos à eleição de 2014. Mesmo com todas as críticas que tenho, votei pela reeleição de Dilma Rousseff. Só que não foi simplesmente para dizer não à volta do PSDB ao governo. Também significava dizer sim à redução da miséria, da fome (pela primeira vez o Brasil saiu do “mapa da fome” da ONU); também era um sim à possibilidade de mais brasileiros entrarem na universidade, seja por meio de bolsas do ProUni ou nas várias universidades federais criadas nos governos Lula e Dilma; também era um sim ao maior protagonismo internacional do Brasil nos últimos 12 anos, com uma política externa mais independente; sem contar que o país passou pelos piores momentos da crise econômica sem ter desemprego em massa como se vê em vários países europeus. O coro no qual entrei não era simplesmente “contra Aécio Neves”: era também em defesa de um Brasil que, a despeito de muitos problemas que persistem, é inegavelmente melhor que aquele de 12 anos atrás. Posso dizer que domingo fui dormir não só aliviado, mas também com a consciência tranquila: as críticas que tenho ao governo Dilma são mantidas (e sei que Aécio não atenderia àqueles anseios, pelo simples fato de serem pautas de esquerda); e ao mesmo tempo votei contra o discurso de ódio à diversidade e à democracia de muitas pessoas (“coxinhas”) que deram seus votos a Aécio.

Obviamente nem todo mundo que votou no candidato do PSDB é “coxinha”. Sei porque há amigos meus que digitaram o 45 e ficaram estarrecidos com a reação de vários eleitores de Aécio, que destilavam ódio ao Nordeste e defendiam separatismo (tremenda burrice, pois tanto Dilma como o tucano tiveram votos em todas as partes do Brasil). Quem votou em Aécio por achar que ele seria melhor para o país e não por acreditarem nas insanidades “coxinhas” certamente pensa: será que é possível ser oposição sem ser “coxinha”? A resposta, obviamente, é sim. O problema é que atualmente quem grita mais alto contra o atual governo são justamente os “coxinhas”, que nem sequer são a favor de algum projeto para o país: querem simplesmente “tirar o PT do governo”. Isso não tira a legitimidade de quem se opõe – é um direito inerente à democracia que deve ser plenamente garantido – mas certamente dá um peso na consciência de quem é favorável a um projeto liberal (que nada tem a ver com o defendido pelos pseudoliberais brasileiros) e não simplesmente “anti-PT”.

O debate da Band

Terminou agora há pouco (já passa de uma da manhã) o debate presidencial da Rede Bandeirantes. Muito longo e cansativo.

Definitivamente, ainda bem que existe o Twitter. Não fosse ele, eu teria desligado a televisão há bem mais tempo… Mas graças a ele, resisti até o final.

Algumas observações:

  • Luciana Genro (PSOL) mandou muito bem ao chamar o candidato do PSC apenas de Everaldo, lembrando que não se deve misturar religião e política. É assim que funciona um Estado laico;
  • Ainda estou tentando entender como Chico Mendes era “elite”. Marina Silva (PSB?) disse isso;
  • Incrível a insistência na promessa populista de cortar cargos em comissão (CCs). Esquecem que muitos CCs são servidores concursados (ou seja, não “caíram de paraquedas” lá), sem contar que não se pode sair nomeando CCs “a torto e direito”. Nesse debate felizmente não ouvi aquele blá-blá-blá de “governo técnico e não político” (o que criaturas assim fazem disputando eleições?);
  • É tanta gente falando em “renovar a política”, “promover uma nova política”, que a maior novidade que pode acontecer é alguém prometer “a velha política”;
  • Pessoal da direita fala em “Estado mínimo” mas ao mesmo tempo defende mais polícia como uma das “soluções mágicas” para criminalidade;
  • Perto do tom predominante nas perguntas dos jornalistas, William Bonner é apenas um “implicante”. Como disse Marcelo Rubens Paiva no Twitter, “jornalismo da Band está à direita da direita”;
  • Debate mostrou que, infelizmente, a questão indígena só é preocupação das candidaturas mais à esquerda. Dilma poderia ao menos prometer mais diálogo em um segundo mandato. Já para as candidaturas da direita, vale o senso comum de que “índio é vagabundo”;
  • Jornalista da Band (não recordo qual) chamou Política Nacional de Participação Social (PNPS), proposta pelo governo, de “bolivariana”. Avisem ele que para muitos (inclusive eu) isso é elogio;
  • E Aécio Neves (PSDB) concordou com o jornalista da Band;
  • Em um momento Marina se enganou e ao se referir ao PSDB no governo falou “PMDB”. Aí teria de falar dos últimos 30 anos, pois salvo breves interregnos o PMDB está no governo desde 1985;
  • Boris Casoy chamou regulação da mídia de “censura”. Alguém avisa o cara que é hora de “virar o disco”, por favor;
  • Outro jornalista da Band (não recordo qual) falou sobre propostas de ensinar criacionismo nas escolas públicas. Algo que sequer deveria ser cogitado em um Estado laico;
  • Marina disse que Ensino Religioso em escolas públicas não é obrigatório, mas não acho isso suficiente: deveria ser proibido. Já li propostas de que a disciplina ensinasse História das Religiões, mas para isso basta aumentar a carga horária de História;
  • Levy Fidélix (PRTB) falou em mais prisões para “atender aos anseios das ruas do ano passado”; Luciana Genro lembrou que junho de 2013 começou com as pessoas pedindo mais direitos e não mais prisões;
  • Em suas considerações finais, Aécio anunciou Armínio Fraga (presidente do Banco Central durante segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso): sorte dele é que boa parte dos eleitores já tinha ido dormir àquela altura;
  • Eduardo Jorge (PV) foi a surpresa positiva do debate. Único candidato a defender abertamente a descriminalização da maconha e do aborto, o que já lhe rendeu o apelido de “Mujica brasileiro” nas redes sociais;
  • Everaldo Pereira (PSC) é a favor da liberdade de imprensa “sem marco regulatório”, como diz defender o “Estado mínimo”. Exceto em relação aos direitos de mulheres e homossexuais: aí é Estado máximo e marco regulatório rígido.

E o debate acabou aí. Felizmente.

Grenalização e generalização

Um dito popular do futebol gaúcho é “Gre-Nal arruma ou desarruma a casa”. Impressionante como, de fato, ele acaba fazendo sentido, devido ao enorme e desproporcional peso que tem tal partida para os dois principais clubes do Rio Grande do Sul.

Poderia citar como exemplo o Grêmio em 2014: o “divisor de águas” do time na temporada foi o Gre-Nal decisivo do Campeonato Gaúcho, perdido por 4 a 1 porque o Internacional “tirou o pé”, poupando o Tricolor de uma goleada histórica. Antes o Grêmio vinha relativamente bem, com boas atuações na Libertadores; depois, nada mais deu certo e o time foi eliminado nas oitavas-de-final do certame continental. Mas nada demonstra de forma mais clara a exagerada importância dada ao clássico do que o acontecido em 2009: após derrota por 2 a 1 e eliminação no Gauchão daquele ano, a direção gremista demitiu Celso Roth – que pode não ser o técnico dos sonhos de ninguém, mas é preciso ressaltar que o Grêmio não só estava invicto na Libertadores como também fazia a melhor campanha da fase de grupos. Todo um discurso de priorizar a competição continental foi por água abaixo devido a um jogo válido pelo menos importante certame daquele momento, só porque era Gre-Nal. O resto da história, todo gremista lembra: 40 dias de espera por Paulo Autuori e eliminação na semifinal contra o Cruzeiro, primeiro adversário realmente forte enfrentado – não digo que Roth levaria o Grêmio à final, mas ao menos daria mais trabalho ao time mineiro (com uma boa retranca o Tricolor não teria levado 3 a 1 no Mineirão).

Mas, para além do clássico propriamente dito, há a exagerada rivalidade que ultrapassa os limites daquela chamada “sadia” (que foi o motor do crescimento da dupla Gre-Nal, ultrapassando o âmbito regional). Muitas vezes, se dá tamanha importância ao rival que isso acaba por mascarar defeitos ou virtudes. Em 2003, por exemplo, o Grêmio fez um Campeonato Brasileiro horrível e passou um turno inteiro na zona do rebaixamento, enquanto o Internacional chegou a liderar o certame e quase se classificou para a Libertadores pela primeira vez em 11 anos. Só que na última rodada fomos nós gremistas que festejamos e ainda tocamos flauta: o Grêmio escapou da queda enquanto o Inter levou 5 a 0 do São Caetano quando um empate bastava para ir à Libertadores. Aquela rodada tão “anos 90” me deu a errônea impressão de que 2003 era um “ponto fora da reta”: não percebia que outra linha já estava sendo traçada, como os anos seguintes demonstrariam de maneira tão dolorosa.

Costuma-se dizer que o Rio Grande do Sul é terra de extremos, sem meio-termo. É um fenômeno apelidado de “grenalização”, em óbvia referência à rivalidade que faz parecer que tudo gira em torno de Grêmio e Internacional no tocante ao futebol, como se não houvesse mais nenhum clube no Estado (não por acaso torcidas como a do Brasil de Pelotas costumam levar aos estádios faixas onde se lê “anti-grenal”). Mas o clima de “8 ou 80” não se resume ao futebol. A política, que já teve guerras civis entre chimangos e maragatos no final do Século XIX e no início do XX, hoje se divide aparentemente entre o PT e o “anti-PT”, sendo que o último nem sempre é o mesmo partido: na maioria das vezes o(a) candidato(a) que encarnava o “anti-petismo” era do PMDB, mas já foi do PSDB (como acontece a nível nacional) e atualmente é do PP (que a nível nacional, ironicamente, apoia o governo do PT). Inúmeras questões no Rio Grande do Sul, para além da disputa partidária, geram debates acirrados entre “dois lados”, como se apenas duas opções fossem possíveis.

Quem dera tal prática ser “privilégio gaúcho”. Mas a grenalização está muito presente no debate de ideias em toda parte. Por exemplo, agora estamos em campanha eleitoral no Brasil, e para muitas pessoas isso se resume a uma insana disputa “entre o bem e o mal”, na qual literalmente “vale tudo”. Por anos os setores mais raivosos da direita apelaram para a baixaria contra os candidatos da esquerda (“Lula bêbado”, “Dilma terrorista” etc.) de modo a pintá-los como “a encarnação do mal”; atualmente é utilizado o “terrorismo econômico” devido à possibilidade de Dilma Rousseff ser reeleita no primeiro turno. Mas agora vemos, infelizmente, parte da esquerda também aderindo a esse modelo de disputa “entre o bem e o mal”: nada mais decepcionante (para dizer o mínimo) do que militantes petistas apelarem para a velha “moral de cuecas” conservadora para atacar Aécio Neves, aplicando exatamente os mesmos métodos tão criticados quando usados pelo “lado de lá”; entre setores da esquerda críticos ao governo Dilma (e razões à esquerda para criticar o governo não faltam) o clima de “Gre-Nal” também é forte, com um impressionante e assustador sectarismo. Sem contar a direita mais delirante, que considera até o PSDB “esquerdista”.

Vamos para a política internacional, e é a mesma coisa. Na questão da Palestina, então, a discussão chega às raias do absurdo. Sou favorável à causa palestina e condeno os ataques israelenses, mas por conta disso os mais cegos defensores de Israel dirão que eu defendo o Hamas e sou “antissemita”, como se criticar o Estado de Israel fosse o mesmo que pregar ódio aos judeus e defender o Hamas (aliás, como se todos os palestinos fossem apoiadores de tal organização). Ao mesmo tempo, em caixas de comentários por aí já vi críticos a Israel emitindo opiniões pavorosas, essas sim pregando ódio aos judeus (com direito a um mentecapto inclusive insinuar que o Holocausto não teria acontecido, o que ofende a inteligência de qualquer pessoa com o mínimo conhecimento de História); sem contar que inúmeros judeus condenam os ataques contra o povo palestino, e que muitos jovens israelenses se recusam a prestar serviço militar pelo mesmo motivo. Ou seja, uma questão que é muito mais complexa do que parece acaba reduzida a este estúpido “8 ou 80” – o que, vamos combinar, jamais trará a paz.

O maniqueísmo, a divisão de tudo em “dois lados” (sendo o nosso obviamente correspondente ao “bem”), só serve para perpetuar a ignorância e o ódio. Além de mascarar nossos próprios defeitos – e as virtudes dos outros. A grenalização generaliza, nos leva a esquecer a pluralidade e a acreditar numa falsa dualidade, além de, consequentemente, empobrecer a discussão de ideias. Afinal, é mais fácil acusar o adversário de ser isto, isso e aquilo (afinal, ele é “mau”) do que realmente debater.

Oito ou oitenta

Vivemos tempos de extremos. Não há espaço para o meio-termo. Talvez a temperatura por aqui seja apenas um reflexo disso: este verão é um dos mais rigorosos de todos os tempos, nos submetendo a um calor desolador cuja única escapatória parece ser, literalmente, a fuga em direção ao extremo sul do continente. Novamente, os extremos.

É tempo de extremos também no “debate” político nacional. Com aspas, pois o que menos há, hoje em dia, é debate. É um cenário de polarização, de “oito ou oitenta”, com pouco espaço para outras nuances e, principalmente, troca de ideias.

Bem fácil notar isso nas atitudes das militâncias de PT e PSDB: quem não é apoiador cego do governo, na visão petista, vira “tucano”, mesmo que seja mais de esquerda que o próprio PT. E para tucanos e outros de direita, quem é de esquerda é “PT”, mesmo que seja o cara ao qual recém nos referimos, que não apoia cegamente o governo (ou não apoia de jeito nenhum). Sem contar o insano “anticomunismo” de alguns, que acreditam piamente que o Brasil está prestes a sofrer um “golpe comunista”.

Não por acaso, o vídeo abaixo é quase perfeito, pois tirando as camisas “comunistas” do PT (visto que o partido está muito longe disso), dá uma amostra do que virou o “debate” político no Brasil polarizado: aquelas discussões sem sentido sobre futebol. Se substituírem o horário eleitoral gratuito por gritos de “torcidas organizadas”, não fará diferença alguma em termos de discussão de ideias.

Feliz 2014?

Peço desculpas aos que estão naquele clima de euforia pelo ano novo, mas eu não embarco junto. Ainda mais que, definitivamente, não tenho mais saco para festas de final de ano. Muito embora se possa dizer que 2013 é daqueles anos que, da mesma forma que 1968, não terminam com o 31 de dezembro.

A maior parte das pessoas deve pensar em 2014 e lembrar da Copa do Mundo. “Imagina na Copa”, eis o bordão preferido de muitos – e que, convenhamos, faz bastante sentido. Será uma época em que teremos muito futebol, mas também o estado de exceção. Foram-se os tempos em que o início de um ano de Copa me empolgava.

O ano que se inicia também terá eleição presidencial. Lembram do nojo que foi 2010? Foi uma campanha marcada mais por “denuncismo” e ataques do que por discussão de propostas. E em 2014 tende a ser pior: o PT completará 12 anos no governo – o que não quer dizer 12 anos sem a direita lá, dadas as alianças pela “governabilidade” (Renan Calheiros e Marco Feliciano estão aí para provar); a oposição de direita (PSDB/DEM/PPS), que não tem projeto, fará de tudo em termos de baixaria (que será igualmente respondida), pois é o que lhe resta. Então, nos preparemos para os panfletos apócrifos, discussões vazias… Nada surpreendente, dada a atual “padronização” das campanhas eleitorais – como mostra o vídeo abaixo, uma genial sátira que reflete muito bem o que se viu nas eleições municipais de 2012.

“Tem também eleições para outros cargos”, alguém lembrará. Sim, também elegeremos governadores, senadores, deputados federais e estaduais. Então lembro de várias análises que li e que me preocupam: a bancada evangélica no Congresso, que tem pavor do Estado laico, deve crescer na próxima eleição.

Fica a dúvida: torcer para 2014 passar correndo? Pedir para ficar em 2013?

Bom, acho que só resta mesmo tentar fazer alguma coisa para salvar o ano que se inicia, e quem sabe as piores previsões não se confirmem. Dessa forma, será possível que tenhamos, realmente, um feliz 2014.

Como o futebol explica o Brasil

Antes que alguém me pergunte: sim, o título é descaradamente inspirado no excelente livro “Como o futebol explica o mundo”, do jornalista estadunidense Franklin Foer. Pois, de fato, o futebol nos ajuda a entender melhor o mundo, e claro, o Brasil.

O futebol brasileiro sintetiza muito bem o que é o Brasil enquanto sociedade: gritantemente injusto. Quem tem mais pode mais: seja passando por cima das leis, seja usando-as apenas em seu favor, e não em nome de verdadeira justiça.

E, do ponto de vista legal, a decisão tomada pelo STJD ontem à noite foi corretíssima. Portuguesa e Flamengo tiveram jogadores atuando de forma irregular na última rodada do Campeonato Brasileiro, e por conta disso perderam os pontos conquistados em suas partidas, mais três como punição. Com isso, a classificação final do campeonato foi alterada: o Flamengo, que acabara em 11º lugar com 49 pontos, ficou em 16º, com 45; já a Lusa, que terminara em 13º com 48, caiu para o 17º, com 44; e o Fluminense, que com seus 46 pontos ficara em 17º, “ultrapassou” Flamengo e Portuguesa, acabando em 15º na “nova” classificação final e mantendo-se na Série A – quem se ferrou (embora ainda haja possibilidade de recurso) foi a Lusa, rebaixada à Série B de 2014.

Porém, há um outro ponto de vista a ser analisado nesta questão: o da justiça.

Mais do que o talento de nossos jogadores (como se o Brasil fosse o único país do mundo onde se formam grandes craques), a verdadeira “marca registrada” do futebol brasileiro chama-se politicagem. Ela é praticamente uma instituição.

Até o início da década de 2000, rasgar os regulamentos das competições nacionais era algo tão corriqueiro que só faltava… Fazer parte dos regulamentos. Em especial, no tocante ao rebaixamento. Era pedra cantada: caso um grande clube caísse de divisão, seria beneficiado de alguma maneira, seja com “virada de mesa” pura e simples, seja com outras manobras.

Em 1991, o Grêmio acabou em 19º lugar no Campeonato Brasileiro (disputado por 20 clubes) e, com isso, foi rebaixado à Série B. Não houve “virada de mesa” propriamente dita, e o Tricolor disputou a “segundona” no ano seguinte. Porém, antes do torneio começar, a CBF resolveu nos facilitar as coisas: ao invés de classificar apenas o campeão e o vice para a Série A de 1993, a Série B de 1992 promoveria 12 equipes. Com isso, o Grêmio sequer se esforçou em ganhar o título e acabou em 9º lugar. Com o Tricolor de volta à primeira divisão, a CBF consertou a “gambiarra” rebaixando oito clubes à Série B de 1994, mas com um detalhe: dividiu os 32 participantes do (literalmente) Brasileirão de 1993 em quatro grupos formados por oito times cada, mas cairiam apenas os quatro piores dos grupos C e D; os integrantes do Clube dos 13 ficaram nos grupos A e B, que não rebaixariam ninguém… Com isso, o Atlético-MG acabou em 32º lugar (ou seja, na lanterna) e não caiu, enquanto seu rival América-MG ficou em 16º e foi rebaixado.

Mas nenhum clube foi tão beneficiado quanto o Fluminense. Começou em 1996, quando o regulamento do Campeonato Brasileiro era simples: os 24 participantes se enfrentavam em turno único na fase inicial, os oito primeiros iriam às finais e os dois últimos seriam rebaixados à Série B, sem proteção aos “grandes”, em tese. E o Flu acabou em 23º… Após o jogo, Renato Portaluppi (que na reta final foi improvisado como técnico) não teve vergonha alguma de falar em “virada de mesa” para o Fluminense não jogar a “segundona” no ano seguinte.

Mas, em maio de 1997 foi denunciado um esquema de corrupção envolvendo árbitros que teria beneficiado Corinthians e Atlético-PR na Copa do Brasil daquele ano. A CBF reagiu suspendendo o Furacão de todas as competições nacionais por dois anos, e rebaixando-o para a segunda divisão; mas nada foi feito com o Corinthians… Com isso, abriu-se uma vaga na Série A, e o bom senso indicava que ela deveria ficar com o Náutico, 3º colocado na Série B de 1996. Acontece que no Brasil o futebol é regido por outra lógica, que não anda junto com o bom senso: faltando cerca de duas semanas para o início do campeonato de 1997, a CBF voltou atrás na punição ao Atlético-PR, penalizando-o apenas com a perda de cinco pontos (e o Corinthians continuou “ileso”, é claro); aproveitou para reconduzir o Fluminense e o Bragantino (o outro rebaixado de 1996) à Série A, aumentando o número de participantes para 26.

Nas Laranjeiras, dirigentes do Fluminense estouraram champanhas, mas meses depois tiveram de amargar um novo rebaixamento, após o time ficar em 25º lugar e passar o campeonato inteiro ouvindo o coro “ão ão ão, segunda divisão”. Em 1998 não teve jeito, e o Flu disputou a Série B. Teria de tentar voltar jogando bola, sem canetaço. Não conseguiu, e fez pior: caiu para a Série C.

Novos rumores de “virada de mesa” semelhante à de 1997 surgiram, mas o Flu jogou a “terceirona” em 1999, sendo campeão e retornando à segunda divisão como tinha de ser: no campo. Parecia, felizmente, que a era das “viradas de mesa” estava sepultada.

Porém, a maior delas apenas estava por vir. Devido a uma pendenga judicial envolvendo o Gama e a CBF, esta foi impedida de organizar o Campeonato Brasileiro de 2000 sem incluir o clube de Brasília na Série A. O Clube dos 13 decidiu assumir a bronca, organizando a Copa João Havelange, torneio que excluiria o Gama – que obteve nova liminar, desta vez contra o próprio Clube dos 13. Para evitar a paralisação total do futebol nacional no segundo semestre de 2000 se chegou a um “acordão” e, como diz o ditado, “acabou tudo em pizza”: o Gama foi incluído naquele verdadeiro monstrengo que era a Copa João Havelange, que parecia ter três divisões mas na prática era apenas um campeonato de 116 participantes divididos em quatro módulos, com todos eles concorrendo ao título máximo do futebol brasileiro. O azul, com 25 equipes, era como se fosse a primeira divisão, por reunir a maior parte dos clubes que estavam na Série A de 1999. Mas nele também estavam times que deveriam jogar a Série B em 2000 caso não houvesse toda aquela confusão, dentre eles o Fluminense… Que assim voltou a primeira divisão, simplesmente “pulando” a segunda.

Desde então, o Flu não mais saiu da Série A, mesmo ainda “devendo” dois anos de “segundona” (além de 2000, tem aquela de 1997). Mas, também não houve mais “viradas de mesa” de 2001 em diante: todos os clubes rebaixados disputaram a Série B no ano seguinte, mesmo os “grandes” – que cumpriram seu papel, retornando à primeira divisão no campo.

Na letra fria da lei, os regulamentos nunca mais deixaram de ser cumpridos. Agora em 2013, por exemplo, a Portuguesa realmente cometeu uma infração, recebeu a punição prevista e, por conta disso, deverá jogar a Série B em 2014.

Porém, faltou levar algo em conta: a irrelevância desta infração para o resultado final do campeonato. Pois o atleta que gerou a punição só jogou por alguns minutos contra o Grêmio, na última rodada, quando mesmo uma derrota não teria rebaixado a Lusa devido à derrota de 5 a 1 do Vasco para o Atlético-PR naquela batalha campal, além de outros resultados paralelos; o Fluminense, por sua vez, não podia alcançar a Portuguesa. O Grêmio é que poderia alegar algum prejuízo, pois se perdesse não teria obtido classificação direta para a fase de grupos da Libertadores, devido à vitória do Furacão. Mas, a partida acabou em 0 a 0, e com isso os dois times ficaram satisfeitos: a Portuguesa (que continuou – ou teria continuado – na Série A) e o Grêmio (vice-campeão brasileiro e classificado direto para a fase de grupos da Libertadores). A propósito: se a Lusa perdeu o ponto conquistado pelo empate (além dos três extras), o Grêmio não deveria ter ganho mais dois pontos, como se tivesse vencido?

“Ah, mas isso é implicância com o Fluminense, pois o Flamengo também foi punido, não houve proteção aos grandes”. De novo, por um motivo irrelevante: o Fla já tinha classificação à Libertadores garantida como campeão da Copa do Brasil e não corria mais risco de cair; já o adversário era o Cruzeiro, campeão com quatro rodadas de antecedência. O resultado daquele jogo (que acabou empatado em 1 a 1) em nada mudaria o campeonato. E, de novo: se o Flamengo perdeu o ponto do empate (além dos três extras), o Cruzeiro não deveria ter ganho mais dois pontos, como se tivesse vencido?

Acontece que é difícil acreditar que o Flamengo teria perdido os pontos caso corresse risco de ser rebaixado com a punição, ou se não houvesse o caso da Portuguesa, esta sim podendo cair e com isso livrar o Fluminense. Como, aliás, costuma acontecer no Brasil: bem diz o ditado que “a corda sempre arrebenta do lado mais fraco”. Ou, do menos forte: o “mensalão do PT” foi julgado e já temos presos em consequência disso, mas outro “mensalão”, aquele do PSDB, aconteceu antes e ainda não foi julgado… Alguma surpresa?

Vencemos a corrupção… Será?

A direita, de forma geral, está em êxtase. Em pleno feriado da Proclamação da República, o Supremo Tribunal Federal determinou a prisão dos condenados na Ação Penal 470, o popular “julgamento do mensalão”.

Dentre os presos se encontra o ex-ministro José Dirceu: condenado judicialmente em 2012, na prática pode-se dizer que sua condenação se deu em 2005, pela imprensa. Pois alguém consegue imaginar a indignação que tomaria conta do país caso Dirceu fosse absolvido? A condenação e a posterior prisão do ex-ministro foram celebradas como uma vitória sobre a corrupção.

Porém, faltou algo fundamental: provas. José Dirceu foi condenado com base em uma teoria jurídica chamada “domínio do fato”, que teria sido formulada por um autor alemão, mas que sequer é aplicada na Alemanha. Com isso, subverteu-se o princípio fundamental de que a dúvida favorece ao réu. Ou seja, de que ninguém tem de ser obrigado a provar sua inocência; ao contrário, o ônus da prova cabe a quem acusa. Com isso, é verdade, corre-se o risco de que um “crime perfeito” (ou seja, aquele em que os autores conseguem apagar todos os vestígios) acabe impune, mas também se reduz a possibilidade de condenações injustas e que se dão em nome de outros interesses alheios à legalidade.

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“Esquerdopata”, “petralha”, “corruPTo”, “esquerdalha”, já deve estar querendo escrever o típico comentarista “anti-corrupção”. Só espero que o mesmo não esqueça de também dirigir suas raivosas manifestações a Ives Gandra Martins, conservador e notório adversário do PT, mas também jurista, e que como tal defende a aplicação da lei, não daquilo que é ditado pela tal de “opinião pública” (da qual a “mídia imparcial” se julga representante).

Ah, e que também não esqueça de se mobilizar para que outros escândalos de corrupção (como, por exemplo, o mensalão tucano) sejam julgados de forma semelhante.