“Já li esse livro?”

Me fiz tal pergunta várias vezes durante a leitura de “O carisma de Adolf Hitler” – que ainda estou longe de terminar, para que se tenha uma ideia.

O livro de Lawrence Rees fala do nazismo mas em muitos (repito: MUITOS) trechos bastaria trocar nomes e época para que se tivesse um retrato do bolsonarismo. Até mesmo no tocante aos absurdos defendidos por Hitler em Mein Kampf.

“Óbvio que ele não vai fazer tudo isso, é só da boca pra fora”: ouvimos muito esta resposta em 2018 quando falávamos da ameaça representada por Jair Bolsonaro à democracia. E, em outras palavras, foi o que os nazistas responderam a quem alertava sobre Hitler.

Terminará o Brasil de Bolsonaro destruído e envergonhado como a Alemanha de Hitler? Melhor será não pagar para ver e fazer andar o impeachment.

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Das efemérides

Depois do ótimo almoço de domingo (feijão tropeiro, feito por gaúchos com feijão argentino), conversando com o meu pai recordei uma efeméride: 1º de setembro é o aniversário do início da Segunda Guerra Mundial. Neste caso em específico, foi o de 80 anos.

Meu pai comentou que o fato era digno de uma postagem no blog. Pensei que realmente era. E que isso aconteceria sem dúvida alguma nos meus bons tempos, em que bastava pensar em um assunto e sentar à frente do computador que o texto sairia quase ao natural. Então lembrei que não precisava ficar apenas me lamentando: exatos dez anos atrás escrevi um sobre o 70º aniversário do início da guerra que eu não mudaria muito nos dias de hoje, pois só foi preciso corrigir um ou outro erro de português (nada como uma década para ajudar na revisão, e os equívocos que sobrarem serão corrigidos em setembro de 2029).

A efeméride me fez pensar que nosso mundo atual anda cada vez mais parecido com aquele de 1939. Em várias partes do mundo a extrema-direita ganha força, por mais que as pessoas digam rejeitar o nazi-fascismo: ele é pintado como algo “anormal”, e a humanidade acredita estar “vacinada” contra ele.

Mas não está: uma das principais características do fascismo (do qual o nazismo era a versão alemã, com algumas particularidades) é oferecer “soluções simples” para tudo e, principalmente, ter um “inimigo” que sirva para dividir a sociedade entre “nós” e “eles”. Na União Europeia, o medo dos imigrantes de origem árabe que fogem da guerra e da pobreza em seus países de origem deu força à extrema-direita até mesmo na Alemanha (onde ela obteve em 2017 seus melhores resultados eleitorais no pós-guerra) e elegeu governos que descambaram para o autoritarismo puro e simples, como é o caso da Hungria. Nos Estados Unidos, Donald Trump foi eleito presidente prometendo construir um muro na fronteira com o México para barrar a imigração de latino-americanos, por lá chamados pejorativamente de cucarachas (baratas).

Já aqui no Brasil, várias pessoas culpam o PT por todos os males, desde a crise econômica iniciada em 2014 (que qualquer pessoa com o mínimo conhecimento de geopolítica sabe que não foi causada apenas por erros do governo petista) até mesmo a problemas que podemos chamar de “sistêmicos” (como a corrupção) e também imaginários como a tal “ameaça comunista” (que já tinha “justificado” o golpe civil-militar de 1964, e mesmo que em 13 anos de governo o PT jamais tenha implantado uma só política que se assemelhasse ao comunismo). Contra ele vale tudo, até votar em um político que em 2016 foi apontado como um dos mais repulsivos do mundo por um importante site de notícias australiano.


Adolf Hitler não era levado a sério com suas promessas de romper os humilhantes tratados de 1919 que tinham sido impostos à Alemanha; quando seu Partido Nazista chegou ao poder em 1933, não foi visto como ameaça pelos grandes industriais alemães (alguns dos quais aderiram com entusiasmo ao nazismo) nem pelas potências europeias rivais (França e Grã-Bretanha), que temiam mais o comunismo e a União Soviética de Josef Stalin que um renascimento do expansionismo alemão (que anteriormente já tinha sido uma das causas da Primeira Guerra Mundial). Ainda mais que Hitler também elegia como “inimiga” a URSS. Logo a Alemanha começou a anexar territórios estrangeiros: primeiro a Áustria (terra natal do ditador), depois a região tchecoslovaca dos Sudetos e na sequência a Tchecoslováquia inteira. O máximo que ouviram foi uma ameaça de britânicos e franceses de que não tolerariam uma invasão da Polônia: fazendo concessões, acreditaram que seria possível “segurar” Hitler e deram com os burros n’água.


Jair Bolsonaro não era levado a sério com seus discursos odiosos e que teciam loas à ditadura, e não era visto como ameaça pela direita tradicional, liderada pelo PSDB, visto que ambos tinham como “inimigo” o PT, que queriam derrotar a qualquer custo. Quando Bolsonaro tornou-se líder nas pesquisas de opinião sobre a eleição presidencial de 2018, boa parte da direita tradicional teve certeza que ele “perderia força”, mas depois, quando o candidato da extrema-direita foi ao segundo turno e venceu, ela acreditou que fazendo concessões (leia-se “oferecendo apoio parlamentar a reformas de caráter ultraliberal”) seria possível “segurá-lo”, tornando seu governo “normal”, respeitador da Constituição de 1988 e do pacto sócio-político que foi vigente por quase 30 anos. Vários setores do empresariado e do agronegócio viram nele uma opção “menos pior que o PT”, e alguns aderiram ao bolsonarismo com entusiasmo…

Ei, já não vimos um filme parecido?


No fim, acabei escrevendo um texto bem maior do que imaginava, ainda mais que não estou nos meus bons tempos. Mas nada de novo, ao menos no tocante à Segunda Guerra Mundial.

E nem sequer respeitei o prazo: só terminei no dia 2 de setembro, quando a efeméride já passou.

Tenho medo do “cidadão de bem”

Uma pequena lista de coisas que vi/li/ouvi nos últimos dias:

Faltou bastante coisa, é verdade, mas concluo que se Adolf Hitler reencarnasse e viesse morar no Brasil, precisaria apenas alterar seu nome, aprender português, raspar o bigode e mudar o corte de cabelo. Os “cidadãos de bem” ajudariam a consagrá-lo nas urnas.

Da inexistência de monstros (ou: a mania humana de dividir o mundo entre “bons” e “maus”)

Causou certa controvérsia o texto publicado na última terça-feira. Principalmente por conta do título: afinal, como dizer que o estuprador não é um monstro?

Antes de publicar, por pouco, o título não foi outro. Ou melhor, não foi “mais longo”. Pensara em complementá-lo: “O estuprador não é um monstro: é um homem”. Talvez assim tivesse ficado melhor, pois teria deixado bem claro o que pretendia dizer naquelas (poucas) linhas escritas – que no fundo, nada mais eram do que um comentário “alongado” relativo ao excelente vídeo do canadense Jeremy Loveday.

Porém, muito provavelmente este outro título também causaria irritação. Mais especificamente, de muitos homens que “vestiriam a carapuça”, achando que a referência era a todos do sexo masculino. Mesmo que não seja preciso ter mais de dois neurônios para perceber que queria dizer o contrário: nem todo homem é estuprador, mas todo estuprador é homem – daí a afirmação de que, enquanto gênero, todos somos responsáveis por isso, e não podemos nos omitir. O fato do machismo oprimir as mulheres não significa que os homens não possam também combatê-lo, mas o primeiro passo para isso consiste em reconhecer que o gênero ao qual pertencemos é o opressor e que, portanto, são pessoas semelhantes a nós (ou seja, homens) que o praticam.

A partir disso, podemos fazer uma analogia para outros casos (como a luta contra o racismo, a homofobia etc.), e estendê-la até mesmo à humanidade como um todo. Temos o costume de classificar qualquer um que tenha comportamento desviante da norma como “criatura anômala”. Estupradores e demais criminosos, por exemplo, são “monstros”. O mesmo se aplica a Adolf Hitler e aos nazistas: barbaridades como o Holocausto não podem ser coisa de humanos, né?

A referência a Hitler não é para seguir a chamada “Lei de Godwin”. Quando aconteceram os atentados terroristas na Noruega, em 22 de julho de 2011, se procurou mostrar o autor confesso dos ataques, o ultradireitista Anders Behring Breivik, como um “monstro” (rá!) e também como “seguidor de Adolf Hitler”. Com isso, passava-se a ideia de que Breivik era uma “criatura anômala”, provavelmente “com problemas mentais”. Logo, seria “menos humano” que nós, “pessoas normais e de bem”. O motivo? Meu amigo Guga Türck “matou a charada”:

Claro, porque é necessário se identificar de alguma forma uma anomalia no comportamento do cara, porque senão todas as razões que ele vem elencando para o seu massacre irão colocar uma gama muito grande de pessoas no saco que este idiota acabou de criar.
Suas ideias são como um compilado de bobagens que tenho ouvido por aí ao longo dos tempos, em jantares de família, saguões de faculdade, mesas de bar… todas essas coisas que permeiam a vida de um jovem da classe média porto-alegrense.
O que ele fez lá na Noruega tem um montão de gente por aqui que adoraria fazer com os integrantes do MST, ou com os moradores de rua, com negros, com vileiros, com os vagabundos do bolsa família, os maconheiros das marchas ou com os bicicleteiros que ousam desafiar os carros.

Resumindo: o “monstro” nada mais é do que um produto da sociedade. Somos seres sociais e, por isso, muito influenciados pelo meio em que vivemos. Não reagimos todos da mesma forma – aí entram as características próprias de cada pessoa. Um psicopata, por exemplo, tende a ser mais violento (isso mesmo, tende, pois nem todos são, por incrível que pareça).

Mas nem todo criminoso é psicopata, e nenhum deles (nem mesmo o psicopata) é monstro. Da mesma forma que Hitler e outros terríveis genocidas. São todos humanos. Iguais a nós.

Acontece que temos a mania de dividir o mundo entre “bons” e “maus”, sendo que, obviamente, nós somos os “do bem”, e os outros, “do mal”. Ou, como lembro de ter sido comentado por um professor em meu primeiro semestre na faculdade de História: “bárbaros são sempre os outros”. Com isso, muitas vezes estamos em meio à barbárie, mas fingimos que nada temos a ver com isso pois somos “civilizados”. Mas temos. E muito.

A Hora “W”

Varsóvia, 1º de agosto de 1944. Às 17h locais, o exército da resistência polonesa (Armia Krajowa) atacou as tropas nazistas que ocupavam a cidade desde o início da Segunda Guerra Mundial e deu início à Revolta de Varsóvia, com o objetivo de libertar a capital – e o próprio país – do domínio tanto alemão quanto soviético. (A Conferência de Teerã, em 1943, já estabelecera a “partilha” da Europa para o pós-guerra com a Polônia ficando na área de influência da União Soviética, o que não deixava de ser a troca de uma dominação por outra.)

O levante acabou derrotado após dois meses, vários milhares de mortos e desaparecidos, e muitos prédios destruídos nos combates (como se já não bastassem os danos que vinham desde 1939). Após a rendição dos resistentes os nazistas continuaram a destruir Varsóvia, de modo que em 1945, quando a guerra chegou ao fim, 85% da capital polonesa estava em ruínas.

A cada 1º de agosto, os poloneses literalmente param tudo o que estão fazendo às 17h para prestar homenagem aos resistentes com um minuto de silêncio, na chamada Hora “W” (Godzina “W”, de “Warszawa”).

A falácia dos “dois lados”

Foi instalada, na última quarta-feira, a Comissão da Verdade, que terá por objetivo esclarecer violações dos direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988. O foco, porém, deverá ser o período de 1964 a 1985, correspondente à ditadura militar.

A reação não tardou. Os clubes militares divulgaram nota na qual deixam claro o desejo de que a Comissão investigue “os dois lados” – ou seja, tanto os agentes do Estado como os opositores. Como se tivéssemos realmente “dois lados”, iguais em força e capacidade de coerção.

Acontece que a luta armada contra a ditadura militar nunca teve força suficiente para de fato ameaçar o regime. A própria Guerrilha do Araguaia, que resistiu por três anos (1972-1975) à feroz ação do Exército, era formada por menos de cem militantes. Ou seja, nem sequer podemos falar de “dois lados em disputa”: havia mesmo era um Estado autoritário que reprimia violentamente os poucos focos de resistência armada.

Mas, mesmo que consideremos a ditadura como “dois lados em disputa”, ainda assim não faz sentido querer que se julgue os militantes da esquerda armada. Pois eles já foram punidos pela própria ditadura (perseguição, prisão, tortura, morte). Tanto que quando da luta pela anistia, ela acabou servindo de desculpa para que também os agentes da repressão fossem incluídos no “pacote”, de modo a que ficassem impunes, como estão até hoje.

Querer que se investigue e se puna os “dois lados” no tocante à ditadura militar equivale a defender que em Nurenberg não só os nazistas fossem julgados: a Resistência Francesa, por exemplo, também deveria ser levada ao tribunal. Absurdo, né?

E quanto ao rótulo de “terroristas” que a direita põe nos militantes da esquerda, é bem típico de regimes autoritários para deslegitimar os opositores. Independentemente de sua vertente ideológica: em 1989, quando o povo se levantou contra a ditadura de Nicolae Ceauşescu na Romênia, o déspota acusou “terroristas” de serem os responsáveis pelos distúrbios. (E então, amigo reaça, vais virar “comunista” e defender Ceauşescu?)

Queria muito que fosse piada

Para os jovens da UCC, a USP é um antro comunista, nenhum partido político é suficientemente conservador, a pedofilia na Igreja é fruto da infiltração de agentes da KGB, o sexo é uma forma de idiotização da juventude, Geraldo Alckmin colocou uma mordaça gay na sociedade paulista, Fernando Henrique Cardoso foi o criador de Lula e Lula é o próprio anticristo.

Parece piada, mas não é. Trata-se da “União Conservadora Cristã”, extrema-direita dos estudantes da USP – um legítimo Tea Party universitário no Brasil. Jovens apenas na idade, pois de cabeça são uma das coisas mais velhas que já vi.

Por mais risíveis que sejam seus argumentos (como a “infiltração de agentes da KGB”* na Igreja como explicação para a existência de padres pedófilos), não podemos “dar de ombros” para a existência deste grupo, assim como diversas outras organizações de extrema-direita. Um dos fatores pelos quais o nazismo cresceu na Alemanha foi o fato de, no começo, não ser levado a sério; e depois, as pessoas não percebiam o que estava acontecendo.

————

* “Infiltração de agentes da KGB”… Alguém avisa esse pessoal que o Muro de Berlim caiu há 22 anos e que a União Soviética se dissolveu há 20.

Monstros não existem

O Guga “acertou na mosca” no texto dele no Alma da Geral, sobre os atentados terroristas da última sexta-feira na Noruega. Já notei a mesma coisa: estão tentando pintar Anders Behring Breivik, autor confesso dos ataques, como um “monstro” e, claro, “seguidor de Adolf Hitler”. Como se Hitler tivesse sido também uma “criatura anômala”.

Lembram de quando foi lançado o filme “A Queda” (Der Untergang)? A obra sofreu críticas por ter mostrado um Adolf Hitler “muito humano”. Pois o certo seria apresentar Hitler como um “monstro”, e não como um um ser humano. Afinal, o nazismo não é obra de seres humanos, certo? (Os nazistas eram monstros disfarçados de humanos, só pode ser isso.)

Essa insistência em negar que a humanidade foi capaz de coisas terríveis como o Holocausto tem uma motivação muito clara: fazer com que as pessoas acreditem que aquilo jamais voltará a acontecer e que, portanto, não é preciso ficar atento. Então, dê-lhe dizer que Hitler, o nazismo, e caras como Anders Behring Breivik são “monstruosidades”…

Mas tem mais na tentativa de colar o rótulo de “monstro” em Breivik. Passo novamente a palavra ao Guga:

Claro, porque é necessário se identificar de alguma forma uma anomalia no comportamento do cara, porque senão todas as razões que ele vem elencando para o seu massacre irão colocar uma gama muito grande de pessoas no saco que este idiota acabou de criar.
Suas ideias são como um compilado de bobagens que tenho ouvido por aí ao longo dos tempos, em jantares de família, saguões de faculdade, mesas de bar… todas essas coisas que permeiam a vida de um jovem da classe média porto-alegrense.
O que ele fez lá na Noruega tem um montão de gente por aqui que adoraria fazer com os integrantes do MST, ou com os moradores de rua, com negros, com vileiros, com os vagabundos do bolsa família, os maconheiros das marchas ou com os bicicleteiros que ousam desafiar os carros.

Exato: o que não falta são pessoas que defendem ideias que seriam muito bem aceitas por Hitler e seus seguidores, mas dizem repudiar o nazismo (por desconhecimento ou cara-de-pau mesmo). E é aí que mora o perigo.

Foi justamente para explicar a seus alunos como os alemães puderam aceitar o nazismo e todos os seus horrores, que em abril de 1967 um professor de História em uma escola nos Estados Unidos demonstrou, de forma prática, como o fascismo surge e cresce sem que a maioria das pessoas se dê conta disso: muito pelo contrário, o apoiam sem nenhum questionamento, nenhuma crítica. Os acontecimentos foram retratados no filme “A Onda” (The Wave), de 1981, que achei inteiro legendado em português no YouTube (dividido em cinco partes) e disponibilizo abaixo.

Em 2008, foi lançada uma versão alemã (Die Welle), que deu uma “atualizada” na história, e que achei melhor. Mas não achei com legendas em português, só o trailer.

A “gente diferenciada” e o fascismo do século XXI

Recebi via e-mail do camarada Eugênio Neves a tradução de um artigo de Robert I. Robinson, publicado originalmente em inglês na página da Al Jazeera. O texto demonstra fala sobre os novos contornos que o fascismo vem tomando, de modo a que não seja reconhecido enquanto tal. Afinal, muitas pessoas associam imediatamente “nazi-fascismo” a Hitler e Mussolini, sem terem muito conhecimento sobre tal fenômeno – e aí, defendem algumas medidas sem se darem conta de que são fascistas (como, por exemplo, a “higienização social” da cidade).

Um trecho que o Eugênio destacou, considero fundamental:

Os deslocamentos de massas migrantes e a exclusão só aumentaram a partir de 2008. O sistema abandonou setores muito amplos da humanidade, que foram apanhados num circuito mortal de acumulação-exploração-exclusão. O sistema já nem tenta incorporar esse excesso de população: trabalha diretamente para isolá-lo e neutralizar a força de rebelião que tenham, real ou potencial; para isso, o sistema criminaliza os pobres; em vários casos, com medidas que tendem ao genocídio.

O Estado abandona qualquer esforço para garantir a própria legitimidade em fatias muito amplas da população que foram relegadas como excesso de mão de obra – ou trabalho super explorado –, e passa a recorrer a mecanismos de exclusão coercitiva: prisão em massa e os complexos prisionais-industriais, polícia pervasiva, manipulação do espaço, leis super repressivas de imigração e campanhas ideológicas que visam a seduzir essas legiões de pessoas e a torná-las passivas: e vêm as campanhas publicitárias para induzir ao consumo desmedido e à fantasia escapista.

O fascismo do século 21 não será igual ao fascismo do século 20. Dentre outras coisas, a habilidade dos grupos dominantes para controlar e manipular o espaço e para exercer controles sem precedentes sobre os veículos e os meios de comunicação de massa, e sobre a produção de imagens e mensagens simbólicas, implica que a repressão será mais seletiva (como vemos hoje no México e na Colômbia, por exemplo), e será organizada juridicamente, de modo que os encarceramentos em massa e legais vão aos poucos assumindo o lugar dos campos de concentração.

O fascismo do século XX tinha por objetivo a conquista do Estado (ou seja, do poder político), e sem mascarar seu objetivo de segregar – e mesmo exterminar – os “indesejáveis”. Foram essas as bases do fascismo italiano, do nazismo alemão, e do regime do apartheid sul-africano.

Atualmente, a exclusão se dá por meios econômicos (mesmo que não apenas por eles). Não se trata propriamente de um fenômeno novo, mas agora o Estado, aparentemente democrático, apenas “legitima” o abuso do poder econômico e, com justificativas das mais variadas, esconde os projetos segregacionistas que estão em andamento por todas as partes do mundo.

Pensaste em “Copa do Mundo” e as inúmeras remoções de famílias para “as obras de revitalização para a Copa”, amigo? Acertaste “na mosca”… A Copa e a Olimpíada servem de desculpas para a realização de uma “higienização social” nas principais metrópoles brasileiras. Afinal, “fica ruim para a imagem do Brasil” que haja gente pedindo esmola nas ruas, com um monte de turistas estrangeiros (dólares e euros!) por aqui. Mas, como diminuir a pobreza é uma tarefa longa e a Copa “é amanhã”, se achou a solução: confinar os pobres, mandá-los para bem longe dos locais onde haverá turistas. Como eles farão para chegarem a seus locais de trabalho morando cada vez mais distante deles e em um transporte público que só piora? “Que se virem”…

Traduzindo: que não se atrevam a ir a lugares “que não são seus”. Caso, por exemplo, de Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. A expansão do metrô da cidade previa uma estação na Avenida Angélica, mas a pressão de 3.500 moradore$ fez com que o governo do Estado (responsável pelo metrô) decidisse deslocar a estação para o Pacaembu – que, com a construção do estádio do Corinthians para a Copa (pra variar…), se tornará um “elefante branco”, sem jogos de futebol.

Dentre os lamentos que foram ouvidos antes da decisão do governo Geraldo Alckmin (PSDB), um é uma pérola: o metrô “atrairia gente diferenciada”. No caso, os pobres, que teriam mais facilidade de acesso a Higienópolis. Os narizes-empinados não pensaram que, com uma estação de metrô, ficaria mais rápido (e barato) para as pessoas que trabalham no bairro mas moram longe chegarem lá. Assim como eles próprios teriam uma nova alternativa de deslocamento, fundamental em uma cidade como São Paulo, de trânsito cada vez mais caótico.

Eles não pensaram, pois uma das características do fascismo é o irracionalismo – e isso não mudou em sua versão do século XXI. O segundo parágrafo da citação lá no começo fala das campanhas ideológicas para “apassivar” as multidões, incluindo aí a publicidade que induz ao consumo desmedido (consumismo) e à ilusão do escapismo – como se vê com os condomínios fechados e os automóveis: reparem que, na propaganda, o carro sempre anda livremente, sem congestionamentos… Então, a opção é de se “isolar” num carrão e ficar três horas no trânsito, ao invés de pegar o metrô e correr o risco de sentar ao lado de “gente diferenciada”, mesmo levando muito menos tempo para chegar ao destino. (Assim, como o transporte coletivo público é “coisa de pobre”, não é prioridade de prefeituras e governos.)

Mas o leitor pode dar uma pesquisada na internet e pensar que nesse caso da “gente diferenciada” os elitistas se deram mal, já que a mudança do lugar da estação pelos citados motivos repercutiu negativamente, e assim o povo vai dar o troco nas urnas. Porém, lembremos do terceiro parágrafo da citação lá do começo: “a habilidade dos grupos dominantes para controlar e manipular o espaço e para exercer controles sem precedentes sobre os veículos e os meios de comunicação de massa“…

Intolerância e o massacre no Rio

Ontem pela manhã, aconteceu em São Paulo um ato em defesa do deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) e suas declarações abertamente preconceituosas. Basta dar uma olhada nas fotos dos apoiadores de Bolsonaro para perceber o quão “do bem” eles são: caras fechadas, tatuagens nazistas, rostos cobertos (ué, se são “do bem” não deveriam temer mostrar a cara, né?) etc. Em contraposição, a esquerda convocou um ato para o mesmo local e no mesmo horário, inclusive reunindo mais gente que os fascistas. A polícia formou um “cordão de isolamento” entre os nazi-fascistas e os manifestantes de esquerda para evitar que houvesse um confronto, e prendeu oito pessoas: seis da direita (dentre eles o responsável por uma bomba na Parada Gay de São Paulo no ano passado e um dos envolvidos na agressão com lâmpadas a homossexuais na Avenida Paulista, em novembro passado, além de outros que eram acusados de homicídio) e duas da esquerda (dois punks que estavam sem documento de identidade).

Vivemos um momento de crescimento da intolerância não apenas no Brasil, é verdade. Mas é terrível que isso ocorra num país como o nosso, onde o “normal” é justamente a diversidade. Chega a ser risível (mas também assustador) que certas pessoas achem que “o brasileiro típico” é branco, heterossexual e cristão; e pior, que só estes devam ser respeitados.

A cultura da intolerância é a causa do chamado bullying nas escolas e em outros ambientes. Afinal, as vítimas das agressões são sempre pessoas que não são aceitas por não se encaixarem nos “padrões” – até mesmo sendo brancas, heterossexuais e cristãs. Afinal, é preciso também ser “bonito” (qualquer que seja o padrão de beleza), extrovertido, bom no futebol etc. Se fugir um pouco disso, vêm os rótulos, os apelidos depreciativos… Muita gente não se encaixa exatamente no “padrão”, e inclusive chega a se identificar com a vítima, mas por medo de passar a ser alvo de chacota, procura evitar ao máximo o colega agredido, ou pior ainda, une-se aos que o atacam.

Aí eu leio diversos textos sobre o massacre na escola de Realengo com uma importante informação: Wellington Menezes de Oliveira era vítima de bullying. Era gozado pelos colegas por ser “diferente”.

Obviamente isso não quer dizer que toda a vítima de bullying um dia irá invadir a escola onde estudou (ou estuda) e disparar dezenas de tiros. Mas não se pode achar que o alvo de gozações aceita isso numa boa – ainda mais durante a adolescência. Com agressões repetidas ao longo de muito tempo, é difícil que a vítima não sinta a menor vontade de se vingar de seus algozes.

Se o agredido tiver problemas psicológicos – caso de Wellington – ele procurará de fato a vingança. E se não puder acertar as contas com seus verdadeiros agressores, o fará com quem mais se assemelhe: no caso de Realengo, foi com os atuais alunos da escola (principalmente meninas, ou seja, ódio por mulheres, a misoginia), que nada fizeram a ele, e provavelmente nem o conheciam.