Como foi possível?

Já se passaram dois anos da eleição, e ainda fico pasmo ao pensar que mais de 57 milhões de pessoas escolheram Jair Bolsonaro para ser o presidente do Brasil. Até mesmo gente de direita que eu considerava sensata não viu nada de errado votar em alguém como ele só para derrotar o PT.

As atitudes dele na pandemia estarrecem, mas são apenas “mais do mesmo”. Ele sempre foi essa pessoa perversa. Bastava uma rápida pesquisa no Google para saber. A única coisa que mudou é que, como presidente, Bolsonaro tem um poder que não tinha como deputado.

Já vi gente de direita me questionar se contra Bolsonaro eu votaria em um candidato de tal lado do espectro político (SPOILER: já estou pronto para votar em João Doria em um eventual segundo turno contra “a coisa” em 2022) ou anularia o voto como fiz em 2016, quando teria de escolher entre Sebastião Melo (MDB) e Nelson Marchezan Júnior (PSDB) para prefeito de Porto Alegre no segundo turno, e digitei 71 ao invés do 15 ou do 45. Bom, já no primeiro ano da gestão tucana me arrependi de minha opção mesmo que meu voto sozinho não mudasse o resultado da eleição: se por um lado eu não tinha consentido com a vitória do PSDB, também não fizera nada contra ela mesmo que fosse preciso votar em outro candidato do qual não gostava.

Então, veio 2018, e eis que o segundo turno para governador do Rio Grande do Sul repetiu o duelo entre MDB e PSDB. Inicialmente hesitei, mas depois decidi pela primeira vez na minha vida digitar o 45 em uma urna eletrônica, votando em Eduardo Leite contra José Ivo Sartori. Sabia que discordaria da maioria esmagadora das decisões de Leite, mas também achava inaceitável a ideia de que um governo lamentável (para dizer o mínimo) como o de Sartori pudesse merecer mais quatro anos. E a covid-19 me deu a certeza de que não me equivoquei: acho que o governo Leite cometeu falhas – faltam testes e o Distanciamento Controlado precisava ser muito mais rigoroso do que é – mas não tenho dúvidas de que estaríamos vivendo um completo caos caso o resultado eleitoral tivesse sido outro, ainda mais que o negacionista Osmar Terra é do mesmo MDB de Sartori e não duvido que fosse nomeado para a Secretaria da Saúde, o que levaria o Rio Grande do Sul a ser um dos piores lugares do mundo para se morar durante a maior pandemia dos últimos 100 anos.

Ou seja: eu já votei em um candidato do qual discordava por não querer um pior. E isso que nem era uma diferença tão grande assim como a que se via na campanha presidencial daquele mesmo ano, que não era uma mera disputa entre dois projetos: era civilização contra barbárie. E a maioria, ou iludida com correntes no WhatsApp ou raivosa, optou pela barbárie…

Mas, será que era tanta ilusão assim? Não tinha como saber que seria um desastre?

O vídeo abaixo é de antes da eleição.

Não era uma escolha muito difícil. Não foi por falta de aviso.

Era só pesquisar no Google, porra.

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O cansaço das redes

Já faz anos que falo em excluir minhas contas nas redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter etc.) mas nunca o faço. Até desisti disso.

Acabo mantendo mas dando prioridade em seguir perfis que me façam rir e desestressar. Pois se bem utilizadas, tais redes podem ser divertidas. Acho mais válido assistir a um vídeo de gatinho fofo fazendo “gatice” do que às últimas do esgoto bolsonarista ou da “lacrosfera” de uma esquerda que ainda não entendeu por que está em baixa.

Mas tem dias em que elas cansam, não posso negar. Volta aquela vontade de encerrar as contas. Então lembro dos bichos engraçados e fico.


Coincidentemente, hoje mesmo faz nove anos de um hilário episódio (e que até relatei por aqui): ex-colega de uma cadeira na faculdade me mandou e-mail denunciando que o MST roubava ovos de tartarugas às margens do Rio Solimões ao invés de produzir alimentos em seus assentamentos na região. Tinha até foto, mostrando que era possível surfar no rio…

Obviamente não era o Rio Solimões, a foto nem mesmo tinha sido tirada no Brasil. Tratava-se da Praia de Ostional, costa do Oceano Pacífico, na Costa Rica. E a coleta de ovos das tartarugas, conforme informei no link indicado no parágrafo anterior, nada tinha de “roubo” ou de qualquer outra ilegalidade.

A difusão dessas merdas foi facilitada pelas redes sociais, mas elas não são as maiores culpadas: a burrice já existia bem antes delas surgirem. Tanto que Nelson Rodrigues, notório conservador falecido quase quatro anos antes do nascimento de Mark Zuckerberg, já falava que os idiotas dominariam o mundo não pela qualidade, mas sim pela quantidade: afinal de contas, eles são muitos.

A democracia “cancelada”

Na noite de domingo, li um “fio” no Twitter que compartilhei devido à gravidade do assunto abordado. (A mensagem abaixo é apenas o começo dele, vai lá para ler tudo.)

Como a autora do tweet bem alertou, isso não tem a repercussão que deveria ter: universidades federais não terão recursos para pagar os salários de seus servidores até o final do ano. Deveria ser o assunto mais falado da segunda-feira, principalmente por parte da esquerda.

Mas não. Pois domingo tinha bloco de Carnaval, Alessandra Negrini participou ao lado de lideranças indígenas e caracterizada como elas, e boa parte da esquerda começou a “debater” se a atriz poderia ou não se fantasiar de índia…

Não que eu ache despropositado tal debate. O problema é o momento.

Afinal, o que é mais pertinente discutir agora? Fantasia de Carnaval ou a destruição das universidades públicas?

Provavelmente essa galera “problematizadora” já se formou. Com o diploma garantido, não se preocupa com o que realmente é importante. Então, dê-lhe falar de “apropriação cultural” e “cancelar” quem discorda.

Sabe qual será o resultado disso tudo? A esquerda tomará mais “vareios” nas urnas como já vimos nas recentes eleições, com direito a uma possível (e cada vez mais provável) reeleição do atual (des)governo em 2022. E no fim das contas a nossa já gravemente ferida democracia é que será “cancelada”.

Ser de esquerda não é “voto de pobreza”

Muito antes pelo contrário: é contra a pobreza. É por uma distribuição mais justa de renda – portanto, da riqueza.

Acho hilário – para não dizer tosco – criticar uma pessoa declaradamente de esquerda por ela ter um celular bom, fazer viagens bacanas ou mesmo por assistir determinados esportes.

(Sim, teve gente idiota no Twitter falando de uma suposta “incoerência” que seria uma pessoa ser de esquerda e assistir ao Super Bowl. Mostrando que sequer sabem como funcionam as principais ligas esportivas dos Estados Unidos: ainda que por um propósito bem capitalista – faturar mais – elas possuem mecanismos que evitam um desequilíbrio muito grande na disputa, tornando-as bem mais atraentes do que campeonatos monótonos como o de futebol na Espanha.)

Sem contar que, se uma pessoa que vive com relativo conforto não pode ser de esquerda, pela mesma lógica quem está sempre mal de grana não poderia ser de direita. Mas infelizmente gente do segundo tipo é o que não falta.

O ódio nosso de todo dia

Seguindo minha “linha” de escrever no Medium sobre assuntos ditos “relevantes”, resolvi fazê-lo sobre o ódio que temos vivenciado todos os dias. Quando o texto estiver pronto, divulgarei o link – tanto aqui como também no Facebook, no Twitter…

Vou apenas fazer um breve comentário (seria um “texto-comentário”?) acerca de tal assunto que gera tantos “textões” mas pouca reflexão verdadeira. Como se vê no caso do falecimento de Marisa Letícia, esposa de Lula e importante figura do PT.

Ela foi alvo de muitas manifestações de ódio da direita, isso é fato – e nem surpreende, visto que nossa direita é muito competente em odiar. Porém, muitas pessoas de esquerda estão enveredando pelo mesmo caminho em relação aos “desafetos” do outro lado, ou seja, utilizando os mesmos “métodos” repudiados nos discursos. Com direito até mesmo a linchamentos virtuais – coisa que, aliás, nem é de hoje.

A situação está chegando a um ponto em que as pessoas se sentem intimidadas e preferem não tocar no assunto “política”, pois qualquer comentário pode ser alvo do ódio de ambos os lados. E nem tenho como criticá-las, pois elas não querem ser “apolíticas” como muita gente pensa.

Embora seja verdade que o nível da discussão política no Brasil nunca tenha sido dos mais elevados, a situação atual é cada vez mais preocupante, pois temos duas “metades” que se odeiam e, no meio, uma “maioria silenciosa” que ao não se posicionar abertamente é taxada de “coxinha” ou “petralha”. E isso não parece que vai mudar no curto prazo, infelizmente.

Dia de usar panelas…

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Para cozinhar, é claro. Pois neste domingo, fazer comida é um ato político. Mesmo que, no meu caso, tenha cozinhado apenas um ovo e uma porção de arroz (que, inclusive, eu poderia ter feito no sábado à noite mas deixei para o domingo justamente pelo caráter político da coisa).

“Panelaço” é coisa séria. Se consagrou como um protesto contra a pobreza e a falta de perspectivas – situações que deixam muitas pessoas com as panelas vazias, por falta de grana para comprar comida. Não por acaso, é uma forma de manifestação tipicamente latino-americana – e que chamou a atenção quando chegou à Europa, nos protestos contra a crise financeira na Islândia em 2009.

Mas sempre tem gente que desvirtua as coisas. No caso do “panelaço”, é gente que não passa o drama de estar com as panelas vazias por falta de dinheiro. Os sem-noção aqui do Brasil não são fato novo: na Venezuela, muito se bateu panela contra Hugo Chávez – e tal como aqui, não eram os mais pobres que o faziam. Não por acaso, enquanto rolava “panelaço” na Zona Sul do Rio de Janeiro, no Complexo do Alemão as panelas estavam sobre o fogão cumprindo sua função primordial de fazer comida.

Isso não quer dizer que vá tudo bem com o país. É fato que há inflação: mesmo que ela seja “brincadeira de criança” em comparação com o que tínhamos no final dos anos 80 e no início dos 90, é algo que complica a vida de quem ganha menos. O desemprego subiu: mesmo que ainda possa ser considerado baixo se fizermos uma comparação com outros países e inclusive com o Brasil de um passado não tão distante (10, 15 anos atrás…), causa preocupação a quem tem suas contas a pagar. Toda hora se descobre um novo escândalo de corrupção: a galera esquece que até não tanto tempo atrás o mais comum era as denúncias serem engavetadas e não investigadas, mas isso não inocenta o PT de ter aderido ao esquema apenas “porque os outros também faziam”.

Mas ainda assim me recuso a aderir ao coro do “Fora Dilma”. Primeiro, porque nem faz um ano que ela foi reeleita, e assim é descarado que protestos como os de hoje são puro chororô de quem perdeu a eleição e quer ganhar na marra. Coisa de criança mimada que quando não vê sua vontade atendida começa a espernear e a fazer escândalo.

Mas tem outro motivo também: mesmo que apareçam indícios que comprometam Dilma e assim justifiquem a abertura de um processo de impeachment, não tenho como participar de protestos como os de hoje. Um texto escrito por Luis Fernando Veríssimo em 2007 ajuda a explicar (aliás, basta trocar “Lula” por “Dilma” para o texto ficar totalmente atual):

Cumplicidade

Uma comprida palavra em alemão (há uma comprida palavra em alemão para tudo) descreve a “guerra de mentira” que começou com os primeiros avanços da Alemanha nazista sobre seus vizinhos. A pouca resistência aos ataques e o entendimento com Hitler buscado pela diplomacia européia mesmo quando os tanques já rolavam se explicam pelo temor comum ao comunismo. A ameaça maior vinha do Leste, dos bolcheviques, e da subversão interna. Só o fascismo em marcha poderia enfrentá-la. Assim muita gente boa escolheu Hitler como o mal menor. Ou, comparado a Stalin, o mau menor. Era notório o entusiasmo pelo nazismo em setores da aristocracia inglesa, por exemplo, e dizem até que o rei Edward VIII foi obrigado a renunciar não só pelo seu amor a uma plebéia mas pela sua simpatia à suástica. Não tardou para Hitler desiludir seus apologistas e a guerra falsa se transformar em guerra mesmo, todos contra o fascismo. Mas por algum tempo os nazistas tiveram seu coro de admiradores bem-intencionados na Europa e no resto do mundo – inclusive no Brasil do Estado Novo. Mais tarde estes veriam, em retrospecto, do que exatamente tinham sido cúmplices sem saber. Na hora, aderir ao coro parecia a coisa certa.

Comunistas aqui e no resto do mundo tiveram experiência parecida: apegarem-se, sem fazer perguntas, ao seu ideal, que em muitos casos nascera da oposição ao fascismo, mesmo já sabendo que o ideal estava sendo desvirtuado pela experiência soviética, foi uma opção pela cumplicidade. Fosse por sentimentalismo, ingenuidade ou convicção, quem continuou fiel à ortodoxia comunista foi cúmplice dos crimes do stalinismo. A coisa certa teria sido pular fora do coro, inclusive para preservar o ideal.

Se esses dois exemplos ensinam alguma coisa é isto: antes de participar de um coro, veja quem estará do seu lado. No Brasil do Lula é grande a tentação de entrar no coro que vaia o presidente. Ao seu lado no coro poderá estar alguém que pensa como você, que também acha que Lula ainda não fez o que precisa fazer e que há muita mutreta a ser explicada e muita coisa a ser vaiada. Mas olhe os outros. Veja onde você está metido, com quem está fazendo coro, de quem está sendo cúmplice. A companhia do que há de mais preconceituoso e reacionário no país inibe qualquer crítica ao Lula, mesmo as que ele merece.

Enfim: antes de entrar num coro, olhe em volta.

Pois bem: ainda que houvesse motivos para o impeachment de Dilma, eu não deixaria de ficar em casa cozinhando para ir ao protesto (nem sei se terá em Ijuí). Pois como bem alerta LFV, antes de entrar num coro eu olho em volta. E nesse em específico, eu me depararia exatamente com o que há de mais preconceituoso e reacionário no país. E como diz o texto (numa aparente contradição de LFV mas que não entendo como tal), não seria na companhia da direita que eu me manifestaria contra qualquer governo: não é “a minha turma”. Jamais serei cúmplice dessa gente que defende “meritocracia” (seria um sistema justo, sem aspas, se a todos fossem dadas as mesmas condições), fim dos programas sociais, expulsão de imigrantes, pena de morte, redução da maioridade penal, e, o pior de tudo, a tal “intervenção militar” (que jamais será “constitucional”). O que deixa bem claro que tolerância com o diferente não é o forte dessa gente.


O negócio, então, é zoar no dia de hoje. E já que a “moda” é protestar “contra a corrupção” vestindo a camisa da Seleção (com o escudo da super-correta e nada corrupta CBF), agora vai ter 7 gols da Alemanha (pois essa gente merece muito os 7 a 1). Se reclamar, vai ter 14. Se reclamar de novo, vai ter 28!

Grenalização e generalização

Um dito popular do futebol gaúcho é “Gre-Nal arruma ou desarruma a casa”. Impressionante como, de fato, ele acaba fazendo sentido, devido ao enorme e desproporcional peso que tem tal partida para os dois principais clubes do Rio Grande do Sul.

Poderia citar como exemplo o Grêmio em 2014: o “divisor de águas” do time na temporada foi o Gre-Nal decisivo do Campeonato Gaúcho, perdido por 4 a 1 porque o Internacional “tirou o pé”, poupando o Tricolor de uma goleada histórica. Antes o Grêmio vinha relativamente bem, com boas atuações na Libertadores; depois, nada mais deu certo e o time foi eliminado nas oitavas-de-final do certame continental. Mas nada demonstra de forma mais clara a exagerada importância dada ao clássico do que o acontecido em 2009: após derrota por 2 a 1 e eliminação no Gauchão daquele ano, a direção gremista demitiu Celso Roth – que pode não ser o técnico dos sonhos de ninguém, mas é preciso ressaltar que o Grêmio não só estava invicto na Libertadores como também fazia a melhor campanha da fase de grupos. Todo um discurso de priorizar a competição continental foi por água abaixo devido a um jogo válido pelo menos importante certame daquele momento, só porque era Gre-Nal. O resto da história, todo gremista lembra: 40 dias de espera por Paulo Autuori e eliminação na semifinal contra o Cruzeiro, primeiro adversário realmente forte enfrentado – não digo que Roth levaria o Grêmio à final, mas ao menos daria mais trabalho ao time mineiro (com uma boa retranca o Tricolor não teria levado 3 a 1 no Mineirão).

Mas, para além do clássico propriamente dito, há a exagerada rivalidade que ultrapassa os limites daquela chamada “sadia” (que foi o motor do crescimento da dupla Gre-Nal, ultrapassando o âmbito regional). Muitas vezes, se dá tamanha importância ao rival que isso acaba por mascarar defeitos ou virtudes. Em 2003, por exemplo, o Grêmio fez um Campeonato Brasileiro horrível e passou um turno inteiro na zona do rebaixamento, enquanto o Internacional chegou a liderar o certame e quase se classificou para a Libertadores pela primeira vez em 11 anos. Só que na última rodada fomos nós gremistas que festejamos e ainda tocamos flauta: o Grêmio escapou da queda enquanto o Inter levou 5 a 0 do São Caetano quando um empate bastava para ir à Libertadores. Aquela rodada tão “anos 90” me deu a errônea impressão de que 2003 era um “ponto fora da reta”: não percebia que outra linha já estava sendo traçada, como os anos seguintes demonstrariam de maneira tão dolorosa.

Costuma-se dizer que o Rio Grande do Sul é terra de extremos, sem meio-termo. É um fenômeno apelidado de “grenalização”, em óbvia referência à rivalidade que faz parecer que tudo gira em torno de Grêmio e Internacional no tocante ao futebol, como se não houvesse mais nenhum clube no Estado (não por acaso torcidas como a do Brasil de Pelotas costumam levar aos estádios faixas onde se lê “anti-grenal”). Mas o clima de “8 ou 80” não se resume ao futebol. A política, que já teve guerras civis entre chimangos e maragatos no final do Século XIX e no início do XX, hoje se divide aparentemente entre o PT e o “anti-PT”, sendo que o último nem sempre é o mesmo partido: na maioria das vezes o(a) candidato(a) que encarnava o “anti-petismo” era do PMDB, mas já foi do PSDB (como acontece a nível nacional) e atualmente é do PP (que a nível nacional, ironicamente, apoia o governo do PT). Inúmeras questões no Rio Grande do Sul, para além da disputa partidária, geram debates acirrados entre “dois lados”, como se apenas duas opções fossem possíveis.

Quem dera tal prática ser “privilégio gaúcho”. Mas a grenalização está muito presente no debate de ideias em toda parte. Por exemplo, agora estamos em campanha eleitoral no Brasil, e para muitas pessoas isso se resume a uma insana disputa “entre o bem e o mal”, na qual literalmente “vale tudo”. Por anos os setores mais raivosos da direita apelaram para a baixaria contra os candidatos da esquerda (“Lula bêbado”, “Dilma terrorista” etc.) de modo a pintá-los como “a encarnação do mal”; atualmente é utilizado o “terrorismo econômico” devido à possibilidade de Dilma Rousseff ser reeleita no primeiro turno. Mas agora vemos, infelizmente, parte da esquerda também aderindo a esse modelo de disputa “entre o bem e o mal”: nada mais decepcionante (para dizer o mínimo) do que militantes petistas apelarem para a velha “moral de cuecas” conservadora para atacar Aécio Neves, aplicando exatamente os mesmos métodos tão criticados quando usados pelo “lado de lá”; entre setores da esquerda críticos ao governo Dilma (e razões à esquerda para criticar o governo não faltam) o clima de “Gre-Nal” também é forte, com um impressionante e assustador sectarismo. Sem contar a direita mais delirante, que considera até o PSDB “esquerdista”.

Vamos para a política internacional, e é a mesma coisa. Na questão da Palestina, então, a discussão chega às raias do absurdo. Sou favorável à causa palestina e condeno os ataques israelenses, mas por conta disso os mais cegos defensores de Israel dirão que eu defendo o Hamas e sou “antissemita”, como se criticar o Estado de Israel fosse o mesmo que pregar ódio aos judeus e defender o Hamas (aliás, como se todos os palestinos fossem apoiadores de tal organização). Ao mesmo tempo, em caixas de comentários por aí já vi críticos a Israel emitindo opiniões pavorosas, essas sim pregando ódio aos judeus (com direito a um mentecapto inclusive insinuar que o Holocausto não teria acontecido, o que ofende a inteligência de qualquer pessoa com o mínimo conhecimento de História); sem contar que inúmeros judeus condenam os ataques contra o povo palestino, e que muitos jovens israelenses se recusam a prestar serviço militar pelo mesmo motivo. Ou seja, uma questão que é muito mais complexa do que parece acaba reduzida a este estúpido “8 ou 80” – o que, vamos combinar, jamais trará a paz.

O maniqueísmo, a divisão de tudo em “dois lados” (sendo o nosso obviamente correspondente ao “bem”), só serve para perpetuar a ignorância e o ódio. Além de mascarar nossos próprios defeitos – e as virtudes dos outros. A grenalização generaliza, nos leva a esquecer a pluralidade e a acreditar numa falsa dualidade, além de, consequentemente, empobrecer a discussão de ideias. Afinal, é mais fácil acusar o adversário de ser isto, isso e aquilo (afinal, ele é “mau”) do que realmente debater.

Oito ou oitenta

Vivemos tempos de extremos. Não há espaço para o meio-termo. Talvez a temperatura por aqui seja apenas um reflexo disso: este verão é um dos mais rigorosos de todos os tempos, nos submetendo a um calor desolador cuja única escapatória parece ser, literalmente, a fuga em direção ao extremo sul do continente. Novamente, os extremos.

É tempo de extremos também no “debate” político nacional. Com aspas, pois o que menos há, hoje em dia, é debate. É um cenário de polarização, de “oito ou oitenta”, com pouco espaço para outras nuances e, principalmente, troca de ideias.

Bem fácil notar isso nas atitudes das militâncias de PT e PSDB: quem não é apoiador cego do governo, na visão petista, vira “tucano”, mesmo que seja mais de esquerda que o próprio PT. E para tucanos e outros de direita, quem é de esquerda é “PT”, mesmo que seja o cara ao qual recém nos referimos, que não apoia cegamente o governo (ou não apoia de jeito nenhum). Sem contar o insano “anticomunismo” de alguns, que acreditam piamente que o Brasil está prestes a sofrer um “golpe comunista”.

Não por acaso, o vídeo abaixo é quase perfeito, pois tirando as camisas “comunistas” do PT (visto que o partido está muito longe disso), dá uma amostra do que virou o “debate” político no Brasil polarizado: aquelas discussões sem sentido sobre futebol. Se substituírem o horário eleitoral gratuito por gritos de “torcidas organizadas”, não fará diferença alguma em termos de discussão de ideias.

Há 40 anos, morria Pablo Neruda

Pablo_Neruda

Lançado em 1994 e baseado em um livro do escritor chileno Antonio Skármeta, o filme “O Carteiro e o Poeta” conta a história da amizade entre um jovem carteiro e o poeta Pablo Neruda. Enquanto no livro a história se passava no Chile dos anos 1970, o filme a transportou para a Itália na década de 1950.

No filme, o comunista Neruda teve de partir para o exílio devido à perseguição política no Chile, e optou por morar em uma pequena ilha italiana, onde a maioria da população vivia da pesca. Seria o destino de Mario Ruoppolo, não fossem seus enjoos quando subia no barco; instado por seu pai a procurar outro trabalho, consegue um emprego como carteiro, mas com uma peculiaridade: entregaria correspondências apenas a uma pessoa, justamente o poeta chileno.

Mario refere-se a Pablo Neruda como “poeta do amor”, e é a ele que recorre quando se apaixona por uma mulher e não sabe como conquistá-la; seu chefe no Correio, comunista como Neruda, prefere chamá-lo de “poeta do povo”. Trata-se de uma aparente oposição, mas que não se mantém: no decorrer do filme, Mario adere ao comunismo e também torna-se poeta com o apoio de Neruda, conquistando o amor de Beatrice, com quem se casa.

Assisti ao filme pela primeira vez por volta dos 14 anos de idade, período em que começava a ter uma melhor compreensão do mundo. Saber que Pablo Neruda, “o poeta do amor”, era comunista, fez com que a esquerda ganhasse ainda mais pontos em meu coração. Não por acaso, foi por aquela mesma época que escrevi meu “manifesto comunista”: um texto usando a parte vermelha da fita de minha máquina de escrever.

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Pablo Neruda morreu em Santiago, a 23 de setembro de 1973. Oficialmente, devido a um câncer de próstata. Mas suspeita-se que na verdade ele tenha sido assassinado pela recém-instalada ditadura de Augusto Pinochet (apenas doze dias antes do falecimento de Neruda, acontecera o violento golpe militar que derrubou Salvador Allende), o que motivou a exumação do corpo do poeta. Ainda mais que na mesma clínica em que Neruda foi internado em seus últimos dias, morreu em 1982 o ex-presidente Eduardo Frei Montalva – e investigações provaram que sua morte se deu por envenenamento, a mando do regime.

O poeta do amor deixou a vida quando seu país passava a ser governado pelo ódio. Em um 23 de setembro, dia que no hemisfério sul marca o início da primavera – que só 17 anos depois chegaria ao Chile.

É urgente parar os protestos

Pretendia ter ido à manifestação desta quinta em Porto Alegre, já que não estive nas duas últimas. Quinta passada tinha reunião com meu orientador; na última segunda tinha aula e cheguei a me dirigir em direção à Cidade Baixa depois em busca do ato, mas não o encontrei, pois o grosso dos manifestantes ainda estava na Ipiranga – boa parte deles, tomando porrada.

Durante o dia, circularam muitos boatos – e justamente pela falta de confirmação, os considerei como tais. Um deles dizia que os ônibus sairiam de circulação cedo, por volta das 5 da tarde. Segundo a EPTC eles cumpririam sua tabela normal de horários, mas por via das dúvidas, as pessoas foram liberadas mais cedo do trabalho, devido ao temor de que não conseguissem chegar em casa. O resultado foi a antecipação do “horário de pico” para as 4 da tarde; e foi ainda mais caótico, pois não era um congestionamento normal: as pessoas queriam estar longe do Centro o mais rápido possível, por isso, foram todos ao mesmo tempo. As paradas de ônibus estavam abarrotadas.

Quando saí do trabalho, não sabia se ia para a frente da Prefeitura ou vinha para casa – e a ideia de trocar o “vem pra rua” pelo “vem pra casa” se fortaleceu após eu mergulhar meu pé em uma poca d’água: ao menos teria de trocar a meia e o tênis. O meu irmão tinha dito que estaria no ato e decidi ligar para ele: quando ele disse que iria para casa, tomei o caminho do lar. A pé, pois se pegasse ônibus demoraria ainda mais tempo.

No caminho, foi ainda mais visível o clima de apreensão. Uma loja de conveniência em um posto de gasolina afixava tapumes para proteger seus vidros – o mesmo fazia um hotel ao lado.

Cheguei em casa com o pé encharcado e decidi entrar para o banho: era a senha para permanecer em casa. Porém, não foi só isso. Duas análises que li (aqui e aqui) me fizeram ficar bastante preocupado com o rumo que a coisa está tomando. Vamos relembrar.

Os protestos se iniciaram por uma causa que toca a todos nós: o direito ao transporte. E a cobertura da velha mídia era a de sempre: procurando mostrar os manifestantes como “baderneiros”. Ao ponto da Folha e do Estadão defenderem a repressão aos protestos em São Paulo, semana passada.

Foi o que aconteceu na noite do dia 13. Só que eles sentiram “na pele”, ou melhor, através de uma repórter da Folha. Também perceberam que a adesão aos atos só aumentava, por mais que eles criminalizassem. Então claramente mudaram de lado: passaram a defender os “manifestantes pacíficos” (sendo que muitos dos que apanharam da polícia dia 13 protestavam sem violência).

Veio o dia 17 de junho, a última segunda-feira. As imagens eram – e são – belíssimas: a rua ocupada por milhares de pessoas, lembrando que o espaço público pertence a todos nós, não só ao trânsito de automóveis. Porém, novamente vimos atos de vandalismo – em Porto Alegre a coisa foi muito feia, com muitas depredações e um ônibus incendiado.

Notei algo muito estranho também. No dia seguinte, gente que eu nunca via falar de política (ou quando falava, só saia bosta) manifestava sua opinião no Facebook, dizia querer “um Brasil melhor”, que era hora de “acabar com a corrupção” e etc. Uma semana antes só falava que vivíamos num “país de merda”, e de repente publicava foto com a bandeira do Brasil, se dizendo patriota. Protestar “virou moda”.

E então, eis que me deparo com uma petição online pedindo o impeachment de Dilma Rousseff. Minha cabeça fez algo como um “clic”: um movimento claramente de esquerda e que começou de forma espontânea (a partir das redes sociais), estava sendo tomado pela pior direita. Percebia isso principalmente quando lia comentários acerca de “não pode ter bandeiras partidárias” no ato de quinta, que conforme a organização (?), seria “gigante”. Afinal de contas, em atos que contestam o aumento das passagens e pedem passe livre, as bandeiras que aparecem são as dos partidos de esquerda, justamente por esta causa ser de esquerda.

Meus temores foram confirmados acompanhando as notícias do que acontecia pelo país. Em várias cidades (e principalmente em São Paulo), havia relatos de agressões dos “apartidários” contra quem carregava bandeiras de partidos. Em Brasília, tentaram incendiar o Palácio do Itamaraty. Os protestos foram totalmente desviados do foco original (ou seja, a luta contra o aumento e pelo passe livre), e se voltaram contra os partidos, contra a política (a ponto do Movimento Passe Livre, que chamou as primeiras manifestações em São Paulo, decidir se retirar do ato denunciando a infiltração reacionária). Resumindo, virou uma luta violenta da extrema-direita contra a democracia: em um regime democrático ninguém é obrigado a se filiar a partido algum, mas eles também não podem ser proibidos de existir.

O mais sensato, a essa altura, é cancelar todas as próximas manifestações, visto que a situação está se tornando muito perigosa. O Alexandre Haubrich disse tudo:

Menos empolgação e mais reflexão, por favor. O legado já foi construído, agora chegamos num ponto limite onde as coisas só podem piorar.