Rumo aos 31 a 0

“Todo dia é um 7 a 1 diferente” virou gíria no Brasil de depois daquela fatídica semifinal da Copa do Mundo de 2014. E em muitos casos se usa aquele fiasco diante da Alemanha como comparativo para outras situações.

Foi o caso de um meme (no caso, um print do Twitter) que circulou no final de junho do ano passado. Terminava o primeiro semestre de 2020, e na época achávamos que tinha sido tão ruim que era fácil concordar que a última vez que a primeira parte de algo acabara tão mal o Brasil ia para o intervalo do jogo contra a Alemanha perdendo por 5 a 0. Lembro inclusive de meu comentário ao compartilhar o meme: “pela lógica, levamos só mais dois no segundo tempo e tomara que o ‘gol do Oscar’ seja o impeachment”. (Para ver só, eu nem contava com vacina tão cedo…)

O segundo semestre de 2020 não foi como o segundo tempo daquele Brasil x Alemanha. Afinal, em 2014 os alemães só fizeram mais dois gols. Houve um “gol do Oscar” que foi a vacina; o problema é que em time mal treinado o atacante não presta atenção à defesa adversária e vive impedido: o “gol de honra” acabou anulado, e perdemos por 11 a 0.

Mas foi uma derrota honrosa na comparação com 2021, cujo primeiro semestre (pelo menos no Brasil) se encaminha para ser a pior primeira parte de algo desde quando soou o apito encerrando a etapa inicial de Austrália x Samoa Americana, partida válida pelas eliminatórias da Copa de 2002 que completou 20 anos no último domingo e entrou para a história pelo registro da maior goleada em um jogo oficial entre seleções nacionais. No caso, o Brasil vestiu a camisa de Samoa Americana e a covid-19, a da Austrália, que foi para o vestiário pensando se era ou não o caso de recuar o time e segurar a vitória parcial de 16 a 0.

A “retranca” prevaleceu e os australianos “tiraram o pé” no segundo tempo, só marcando mais 15 gols. Placar final: 31 a 0.

Considerando que estamos na metade de abril, na comparação recém passamos a metade do primeiro tempo. Em Samoa Americana x Austrália, o oitavo gol dos “Socceroos” saiu aos 23 minutos e o nono, aos 25. Aos 27, já estava 10 a 0.

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O 1950 de cada um de nós

Certamente, a criatura mais injustiçada na história do futebol brasileiro. Era um goleiro magistral. Fazia milagres, desviando de mão trocada bolas envenenadas. O gol de Ghiggia, na final da Copa de 50, caiu-lhe como uma maldição. E quanto mais vejo o lance, mais o absolvo. Aquele jogo o Brasil perdeu na véspera.

(Armando Nogueira)

Em 1988, Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado dirigiram o curta “Barbosa”. O filme, de 13 minutos, conta a história ficcional de um menino que estava entre os 200 mil presentes ao Maracanã em 16 de julho de 1950, dia da partida entre Brasil e Uruguai que decidiria o vencedor da Copa do Mundo. Ele acreditava que todos os sonhos dele eram possíveis, e tais sonhos (dele e de um país inteiro) se materializavam na Copa, que seria conquistada pela Seleção Brasileira caso empatasse o jogo que muitos consideravam “mera formalidade”. Mas a glória não veio e ele sofreu por 38 anos, até que conseguiu construir uma máquina do tempo e decidiu voltar àquele dia para tentar impedir a derrota, de modo a mudar o destino do goleiro Moacir Barbosa – e o seu próprio.

Aquela Copa do Mundo significava bem mais para o Brasil do que um simples campeonato de futebol. Era preciso mostrar ao mundo que não éramos mais um país atrasado, que já podíamos estar no seleto grupo das “nações civilizadas”. Daí a construção do Maracanã, que por muito tempo foi o estádio com maior capacidade de público do mundo. Até hoje o número de espectadores na decisão de 1950 não foi superado – e talvez jamais seja.

Porém, o momento em que o Brasil se afirmaria como “grande nação” acabou por se transformar numa tragédia, devido à vitória uruguaia por 2 a 1, de virada, aumentando o que Nelson Rodrigues chamava “complexo de vira-latas”: na hora decisiva, o Brasil enquanto povo “tremeria” diante dos estrangeiros, sendo a Seleção Brasileira mero reflexo disso. Contribuiu para a difusão de tal ideia as afirmações de que Bigode teria “se acovardado” depois de supostamente ter sido agredido pelo capitão uruguaio Obdulio Varela – fato negado por muitos dos jogadores brasileiros que participaram daquela partida. O tal “complexo de vira-latas” seria, em tese, superado a partir de 1958, quando a Seleção Brasileira conquistou sua primeira Copa do Mundo, na Suécia – e depois ainda ganharia mais quatro vezes, fazendo do Brasil o maior dos campeões mundiais, com cinco títulos.

Em tese, apenas. Pois quando as seleções de Brasil e Uruguai se enfrentam, voltam as lembranças de 1950. Para os uruguaios, gloriosas – tanto que, quando o jogo é no lendário Estádio Centenário de Montevidéu, a torcida sempre leva uma enorme bandeira na cor celeste, com apenas uma inscrição: “1950”. Para terem uma ideia: quando estive em Montevidéu pela primeira vez, em agosto de 1998, os uruguaios me tocaram flauta por aquela Copa.

Já os brasileiros lembram uma derrota que jamais foi superada*, mesmo depois de tantas vitórias. Lembro bem daquele 19 de setembro de 1993, quando Brasil e Uruguai se enfrentaram no Maracanã, pela última rodada das eliminatórias sul-americanas para a Copa do Mundo dos Estados Unidos. A principal manchete esportiva do Correio do Povo naquele domingo era: “1950, o ano que não terminou”. Tudo parecia pronto para uma tragédia semelhante à que ocorrera 43 anos antes, e na qual eu poderia encarnar o menino do filme “Barbosa”, apenas com a diferença de que veria pela televisão: eu tinha 11 anos de idade, e o Brasil precisava apenas empatar (sim, naquela época eu torcia pela Seleção). Uma derrota daria a vaga ao Uruguai, e pela primeira vez o Brasil ficaria fora de uma Copa. Felizmente, não aconteceu: 2 a 0 para o Brasil, dois gols de Romário que, no Mundial, foi fundamental para a conquista brasileira.

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O desfecho do filme “Barbosa” acabou por ser tão trágico para aquele homem de “agora” 49 anos (uso aspas pois o personagem vivia em 1988) quanto fora para ele próprio quando tinha 11 anos. Afinal, ele tentou fazer o que todos, certamente, já desejaram alguma vez: voltar no tempo e mudar a história. Pois todos temos uma espécie de “1950 pessoal”: um acontecimento traumático que deixou feridas que parecem nunca cicatrizar. Pode ser a perda de uma pessoas querida, problemas profissionais, uma desilusão amorosa etc. São coisas nas quais, assim como Barbosa em relação àquele chute de Ghiggia, “pensamos um milhão de vezes”: como poderíamos ter evitado que acontecesse, o que teria sido de nós caso aquele evento não tivesse ocorrido…

Quando as lembranças nos atormentam, a ideia de voltar no tempo para “consertá-las” é por demais tentadora. Pois temos a tendência de idealizar um passado que não aconteceu, acreditando que as coisas teriam sido melhores caso ele – e não o passado real – tivesse ocorrido.

Porém, nunca pensamos que tudo poderia ter sido bem pior, como mostra uma crônica de Luis Fernando Verissimo. Perdemos tempo demais nos lamentando pelo que poderíamos ter sido, esquecemos do que somos (com defeitos e qualidades), e principalmente, do que poderemos ser.

Obviamente não acho que a vida de Barbosa após 1950 teria sido pior caso ele tivesse conseguido defender aquele chute. De fato, ele caiu em desgraça justamente por conta daquele gol, mesmo que tenha sido um grande goleiro. Mas ao mesmo tempo, é impossível dizer que sua carreira seria apenas de glórias caso tivesse se consagrado como o goleiro campeão mundial naquele domingo. E o mesmo vale para o que aconteceria com a Seleção (e o próprio Brasil) caso tivesse ganho a Copa, assim como para todos os que ficam especulando sobre os caminhos que poderiam ter seguido, não necessariamente melhores.

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Barbosa faleceu em 7 de abril de 2000 na cidade de Praia Grande (SP), onde vivia só, aos 79 anos de idade. Em seus últimos anos de vida, o ex-goleiro recebeu uma pensão do Vasco, clube no qual mais se destacou, de modo a diminuir seus problemas financeiros. Faltavam pouco mais de três meses para os 50 anos do Maracanazo (como ficou conhecida aquela derrota brasileira) e da condenação de Barbosa por um crime que não cometeu.

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* Na já citada ida ao Uruguai em 1998, disputei uma partida de futebol: era mais uma boa maneira de integrar brasileiros e uruguaios, visto que se tratava de uma viagem de intercâmbio escolar (um mês depois, foram os orientales que vieram a Porto Alegre). Fomos escolher os times e decidimos facilitar: brasileiros de um lado, uruguaios do outro. E passou pela minha cabeça um pensamento: “hora de dar o troco por 1950”. Porém, não falei nada, pois tinha a intenção de que o jogo fosse limpo. Resultado: tomamos olé, envergonhamos o Brasil…

Pato ou Nilmar???

Tá, não precisam me avisar que o jogo já passou!

Mas foi impressionante ver o quanto se falou na “grande mídia”, nos últimos dias, sobre o ataque da Seleção. Pato ou Nilmar??? Até parecia que não havia mais nada de importante.

Literalmente, caiu do céu para a “grande mídia” a expulsão do Luís Fabiano contra o Uruguai. Afinal, a lógica dizia que o Brasil não venceria, já que há muitos anos não ganhava do Uruguai no Centenário: assim, haveria vários motivos para malhar o Dunga.

Aí vieram aqueles 4 a 0, autêntico Centenariazo (acredito que o Uruguai ficará fora da Copa – o que lamento muito, visto que torço bastante pela Celeste Olímpica – e que a desclassificação começou para valer no último sábado). Mas os jornalistas esportivos não podiam ficar sem assunto para comentar. Como ficaria estranho atacar o Dunga após uma goleada da Seleção, e que ainda por cima havia quebrado um tabu, acharam o que falar: como o Luís Fabiano não poderia jogar contra o Paraguai, que se debatesse “Pato ou Nilmar”.

E podem ter certeza: se o Nilmar, titular na partida, não fosse bem… Aí as críticas ao Dunga voltariam: “POR QUE NÃO ESCALOU O PATO???”.

Quero um “presente de colombiano”

Acaba de sair o resultado absurdo do que chamam “julgamento” de Léo, Réver e Morales no STJD (ou STID*?). Afinal, se pressupõe que um julgamento deva ser justo.

Nunca vi jogador algum receber oito jogos de punição com base em imagens de TV (o que aconteceu com Morales). Isso me faz lembrar uma citação que fiz da obra “Sobre a Televisão” de Pierre Bourdieu (1997, p. 12), em que o autor comenta o trabalho de análise de uma fotografia de Joseph Kraft feito pelo cineasta Jean-Luc Godard:

E eu teria podido retomar por minha conta o programa proposto pelo cineasta: “Este trabalho consistia em começar a se interrogar politicamente [eu diria sociologicamente] sobre as imagens e os sons, e sobre suas relações. Era não dizer mais: ‘É uma imagem justa’, mas: ‘É justo uma imagem’; não dizer mais: ‘É um oficial do exército dos federais sobre um cavalo’, mas: ‘É uma imagem de um cavalo e de um oficial’.”

Já que o STJD me deu um péssimo presente de aniversário, espero receber, em compensação, um presente colombiano: vitória da seleção da Colômbia sobre o time da CBF. Há cerca de um mês, escrevi aqui que não consigo torcer pela seleção que se diz ser do Brasil, por não me identificar com aquele time formado por atletas que jogam longe do país.

Agora, vou torcer contra de raiva mesmo. E conclamo todos os gremistas a cantarem antes do jogo, como forma de protesto, a seguinte música que os jogadores da Colômbia também cantarão.

HIMNO NACIONAL DE LA REPÚBLICA DE COLOMBIA
Letra: Rafael Núñez
Música: Oreste Síndici

Coro:
¡Oh gloria inmarcesible!
¡Oh júbilo inmortal!
¡En surcos de dolores
el bien germina ya!

I
¡Cesó la horrible noche! La libertad sublime
derrama las auroras de su invencible luz.
La humanidad entera, que entre cadenas gime,
comprende las palabras del que murió en la cruz.

II
“¡Independencia!” grita el mundo americano;
se baña en sangre de héroes la tierra de Colón.
Pero este gran principio: “El rey no es soberano”,
resuena, y los que sufren bendicen su pasión.

III
Del Orinoco el cauce se colma de despojos;
de sangre y llanto un río se mira allí correr.
En Bárbula no saben las almas ni los ojos,
si admiración o espanto sentir o padecer.

IV
A orillas del Caribe hambriento un pueblo lucha,
horrores prefiriendo a pérfida salud.
¡Oh, sí! De Cartagena la abnegación es mucha,
y escombros de la muerte desprecia su virtud.

V
De Boyacá en los campos el genio de la gloria
con cada espiga un héroe invicto coronó.
Soldados sin coraza ganaron la victoria;
su varonil aliento de escudo les sirvió.

VI
Bolivar cruza el Ande que riega dos océanos;
espadas cual centellas fulguran en Junín.
Centauros indomables descienden a los Llanos,
y empieza a presentirse de la epopeya el fin.

VII
La trompa victoriosa en Ayacucho truena;
y en cada triunfo crece su formidable son.
En su expansivo empuje la libertad se estrena,
del cielo americano formando un pabellón.

VIII
La Virgen sus cabellos arranca en agonía
y de su amor viuda los cuelga del ciprés.
Lamenta su esperanza que cubre loza fría,
pero glorioso orgullo circunda su alba tez.

IX
La patria así se forma, termópilas brotando;
constelación de cíclopes su noche iluminó.
La flor estremecida, mortal el viento hallando,
debajo los laureles seguridad buscó.

X
Mas no es completa gloria vencer en la batalla,
que al brazo que combate lo anima la verdad.
La independencia sola al gran clamor no acalla;
si el sol alumbra a todos, justicia es libertad.

XI
Del hombre los derechos Nariño predicando,
el alma de la lucha profético enseñó.
Ricaurte en San Mateo en átomos volando,
“Deber antes que vida”, con llamas escribió.

E serão muito bem-vindos os colorados que quiserem se juntar ao coro. Como bom gremista, quero que o Inter se exploda, mas que isso se dê de maneira justa, não de forma vergonhosa como em 2005 e como pode vir a acontecer com o Grêmio em 2008.

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* STID = Superior Tribunal de Injustiça Desportiva

Façanha boliviana

A última vez que torci mesmo pela Seleção Brasileira foi na Copa de 1994. Não era o futebol mais adorado pela torcida, mas eu ainda me identificava com o time. Talvez pelo fato de que fazia tanto tempo que o Brasil não era campeão.

Depois, comecei a sentir antipatia pela equipe – o Zagallo certamente colaborou muito com isso. E uma das vezes que mais torci contra foi justamente num Brasil x Bolívia, em 1997: Zagallo convocou Paulo Nunes para a Seleção, deixando-o no banco de reservas durante praticamente toda a Copa América, enquanto no Grêmio ele teria sido utilíssimo, e talvez o Tricolor tivesse passado pelo Cruzeiro nas quartas-de-final da Libertadores se o “diabo loiro” estivesse à disposição da equipe. Na decisão do título da Copa América contra os bolivianos em La Paz a altitude não foi tão decisiva, o Brasil fez 3 a 1 e eu tive uma congestão: afinal, engolir o Zagallo não é fácil…

Na Copa de 2002 ainda torci por causa do Felipão, mas sem a mesma intensidade de 1994. Depois, nunca mais. Ainda mais que a Seleção deixou de ser realmente brasileira, jogando apenas na Europa e às vezes nos Estados Unidos, e com raras convocações de jogadores que atuem no Brasil. O time busca apenas atender a interesses econômicos: os amistosos são disputados onde se paga mais pela presença da marca CBF do Brasil, e não com os atletas tendo contato com a torcida brasileira, em seu país.

Por isso, adorei ver a CBF o Brasil empatar em 0 a 0 com a Bolívia, em um Engenhão cheio… De espaços vazios nas arquibancadas. Botaram ingressos caros para ver essa farsa que dizem representar o país.

Quem realmente representa o Brasil são os atletas olímpicos e paraolímpicos, que até sem ganhar medalhas são vencedores, já que conseguem competir mesmo sem o menor incentivo. No futebol, a Seleção Brasileira Feminina consegue ser vice-campeã mundial e olímpica representando um país sem um campeonato nacional da modalidade.

Já esse time que a mídia insiste em chamar de Seleção Brasileira… Quero mais é que fique fora da Copa de 2010. Quem sabe assim aconteça alguma mudança profunda que faça esse time voltar a representar realmente o Brasil.