Como foi possível?

Já se passaram dois anos da eleição, e ainda fico pasmo ao pensar que mais de 57 milhões de pessoas escolheram Jair Bolsonaro para ser o presidente do Brasil. Até mesmo gente de direita que eu considerava sensata não viu nada de errado votar em alguém como ele só para derrotar o PT.

As atitudes dele na pandemia estarrecem, mas são apenas “mais do mesmo”. Ele sempre foi essa pessoa perversa. Bastava uma rápida pesquisa no Google para saber. A única coisa que mudou é que, como presidente, Bolsonaro tem um poder que não tinha como deputado.

Já vi gente de direita me questionar se contra Bolsonaro eu votaria em um candidato de tal lado do espectro político (SPOILER: já estou pronto para votar em João Doria em um eventual segundo turno contra “a coisa” em 2022) ou anularia o voto como fiz em 2016, quando teria de escolher entre Sebastião Melo (MDB) e Nelson Marchezan Júnior (PSDB) para prefeito de Porto Alegre no segundo turno, e digitei 71 ao invés do 15 ou do 45. Bom, já no primeiro ano da gestão tucana me arrependi de minha opção mesmo que meu voto sozinho não mudasse o resultado da eleição: se por um lado eu não tinha consentido com a vitória do PSDB, também não fizera nada contra ela mesmo que fosse preciso votar em outro candidato do qual não gostava.

Então, veio 2018, e eis que o segundo turno para governador do Rio Grande do Sul repetiu o duelo entre MDB e PSDB. Inicialmente hesitei, mas depois decidi pela primeira vez na minha vida digitar o 45 em uma urna eletrônica, votando em Eduardo Leite contra José Ivo Sartori. Sabia que discordaria da maioria esmagadora das decisões de Leite, mas também achava inaceitável a ideia de que um governo lamentável (para dizer o mínimo) como o de Sartori pudesse merecer mais quatro anos. E a covid-19 me deu a certeza de que não me equivoquei: acho que o governo Leite cometeu falhas – faltam testes e o Distanciamento Controlado precisava ser muito mais rigoroso do que é – mas não tenho dúvidas de que estaríamos vivendo um completo caos caso o resultado eleitoral tivesse sido outro, ainda mais que o negacionista Osmar Terra é do mesmo MDB de Sartori e não duvido que fosse nomeado para a Secretaria da Saúde, o que levaria o Rio Grande do Sul a ser um dos piores lugares do mundo para se morar durante a maior pandemia dos últimos 100 anos.

Ou seja: eu já votei em um candidato do qual discordava por não querer um pior. E isso que nem era uma diferença tão grande assim como a que se via na campanha presidencial daquele mesmo ano, que não era uma mera disputa entre dois projetos: era civilização contra barbárie. E a maioria, ou iludida com correntes no WhatsApp ou raivosa, optou pela barbárie…

Mas, será que era tanta ilusão assim? Não tinha como saber que seria um desastre?

O vídeo abaixo é de antes da eleição.

Não era uma escolha muito difícil. Não foi por falta de aviso.

Era só pesquisar no Google, porra.

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Ser de esquerda não é “voto de pobreza”

Muito antes pelo contrário: é contra a pobreza. É por uma distribuição mais justa de renda – portanto, da riqueza.

Acho hilário – para não dizer tosco – criticar uma pessoa declaradamente de esquerda por ela ter um celular bom, fazer viagens bacanas ou mesmo por assistir determinados esportes.

(Sim, teve gente idiota no Twitter falando de uma suposta “incoerência” que seria uma pessoa ser de esquerda e assistir ao Super Bowl. Mostrando que sequer sabem como funcionam as principais ligas esportivas dos Estados Unidos: ainda que por um propósito bem capitalista – faturar mais – elas possuem mecanismos que evitam um desequilíbrio muito grande na disputa, tornando-as bem mais atraentes do que campeonatos monótonos como o de futebol na Espanha.)

Sem contar que, se uma pessoa que vive com relativo conforto não pode ser de esquerda, pela mesma lógica quem está sempre mal de grana não poderia ser de direita. Mas infelizmente gente do segundo tipo é o que não falta.

O ódio nosso de todo dia

Seguindo minha “linha” de escrever no Medium sobre assuntos ditos “relevantes”, resolvi fazê-lo sobre o ódio que temos vivenciado todos os dias. Quando o texto estiver pronto, divulgarei o link – tanto aqui como também no Facebook, no Twitter…

Vou apenas fazer um breve comentário (seria um “texto-comentário”?) acerca de tal assunto que gera tantos “textões” mas pouca reflexão verdadeira. Como se vê no caso do falecimento de Marisa Letícia, esposa de Lula e importante figura do PT.

Ela foi alvo de muitas manifestações de ódio da direita, isso é fato – e nem surpreende, visto que nossa direita é muito competente em odiar. Porém, muitas pessoas de esquerda estão enveredando pelo mesmo caminho em relação aos “desafetos” do outro lado, ou seja, utilizando os mesmos “métodos” repudiados nos discursos. Com direito até mesmo a linchamentos virtuais – coisa que, aliás, nem é de hoje.

A situação está chegando a um ponto em que as pessoas se sentem intimidadas e preferem não tocar no assunto “política”, pois qualquer comentário pode ser alvo do ódio de ambos os lados. E nem tenho como criticá-las, pois elas não querem ser “apolíticas” como muita gente pensa.

Embora seja verdade que o nível da discussão política no Brasil nunca tenha sido dos mais elevados, a situação atual é cada vez mais preocupante, pois temos duas “metades” que se odeiam e, no meio, uma “maioria silenciosa” que ao não se posicionar abertamente é taxada de “coxinha” ou “petralha”. E isso não parece que vai mudar no curto prazo, infelizmente.

Dia de usar panelas…

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Para cozinhar, é claro. Pois neste domingo, fazer comida é um ato político. Mesmo que, no meu caso, tenha cozinhado apenas um ovo e uma porção de arroz (que, inclusive, eu poderia ter feito no sábado à noite mas deixei para o domingo justamente pelo caráter político da coisa).

“Panelaço” é coisa séria. Se consagrou como um protesto contra a pobreza e a falta de perspectivas – situações que deixam muitas pessoas com as panelas vazias, por falta de grana para comprar comida. Não por acaso, é uma forma de manifestação tipicamente latino-americana – e que chamou a atenção quando chegou à Europa, nos protestos contra a crise financeira na Islândia em 2009.

Mas sempre tem gente que desvirtua as coisas. No caso do “panelaço”, é gente que não passa o drama de estar com as panelas vazias por falta de dinheiro. Os sem-noção aqui do Brasil não são fato novo: na Venezuela, muito se bateu panela contra Hugo Chávez – e tal como aqui, não eram os mais pobres que o faziam. Não por acaso, enquanto rolava “panelaço” na Zona Sul do Rio de Janeiro, no Complexo do Alemão as panelas estavam sobre o fogão cumprindo sua função primordial de fazer comida.

Isso não quer dizer que vá tudo bem com o país. É fato que há inflação: mesmo que ela seja “brincadeira de criança” em comparação com o que tínhamos no final dos anos 80 e no início dos 90, é algo que complica a vida de quem ganha menos. O desemprego subiu: mesmo que ainda possa ser considerado baixo se fizermos uma comparação com outros países e inclusive com o Brasil de um passado não tão distante (10, 15 anos atrás…), causa preocupação a quem tem suas contas a pagar. Toda hora se descobre um novo escândalo de corrupção: a galera esquece que até não tanto tempo atrás o mais comum era as denúncias serem engavetadas e não investigadas, mas isso não inocenta o PT de ter aderido ao esquema apenas “porque os outros também faziam”.

Mas ainda assim me recuso a aderir ao coro do “Fora Dilma”. Primeiro, porque nem faz um ano que ela foi reeleita, e assim é descarado que protestos como os de hoje são puro chororô de quem perdeu a eleição e quer ganhar na marra. Coisa de criança mimada que quando não vê sua vontade atendida começa a espernear e a fazer escândalo.

Mas tem outro motivo também: mesmo que apareçam indícios que comprometam Dilma e assim justifiquem a abertura de um processo de impeachment, não tenho como participar de protestos como os de hoje. Um texto escrito por Luis Fernando Veríssimo em 2007 ajuda a explicar (aliás, basta trocar “Lula” por “Dilma” para o texto ficar totalmente atual):

Cumplicidade

Uma comprida palavra em alemão (há uma comprida palavra em alemão para tudo) descreve a “guerra de mentira” que começou com os primeiros avanços da Alemanha nazista sobre seus vizinhos. A pouca resistência aos ataques e o entendimento com Hitler buscado pela diplomacia européia mesmo quando os tanques já rolavam se explicam pelo temor comum ao comunismo. A ameaça maior vinha do Leste, dos bolcheviques, e da subversão interna. Só o fascismo em marcha poderia enfrentá-la. Assim muita gente boa escolheu Hitler como o mal menor. Ou, comparado a Stalin, o mau menor. Era notório o entusiasmo pelo nazismo em setores da aristocracia inglesa, por exemplo, e dizem até que o rei Edward VIII foi obrigado a renunciar não só pelo seu amor a uma plebéia mas pela sua simpatia à suástica. Não tardou para Hitler desiludir seus apologistas e a guerra falsa se transformar em guerra mesmo, todos contra o fascismo. Mas por algum tempo os nazistas tiveram seu coro de admiradores bem-intencionados na Europa e no resto do mundo – inclusive no Brasil do Estado Novo. Mais tarde estes veriam, em retrospecto, do que exatamente tinham sido cúmplices sem saber. Na hora, aderir ao coro parecia a coisa certa.

Comunistas aqui e no resto do mundo tiveram experiência parecida: apegarem-se, sem fazer perguntas, ao seu ideal, que em muitos casos nascera da oposição ao fascismo, mesmo já sabendo que o ideal estava sendo desvirtuado pela experiência soviética, foi uma opção pela cumplicidade. Fosse por sentimentalismo, ingenuidade ou convicção, quem continuou fiel à ortodoxia comunista foi cúmplice dos crimes do stalinismo. A coisa certa teria sido pular fora do coro, inclusive para preservar o ideal.

Se esses dois exemplos ensinam alguma coisa é isto: antes de participar de um coro, veja quem estará do seu lado. No Brasil do Lula é grande a tentação de entrar no coro que vaia o presidente. Ao seu lado no coro poderá estar alguém que pensa como você, que também acha que Lula ainda não fez o que precisa fazer e que há muita mutreta a ser explicada e muita coisa a ser vaiada. Mas olhe os outros. Veja onde você está metido, com quem está fazendo coro, de quem está sendo cúmplice. A companhia do que há de mais preconceituoso e reacionário no país inibe qualquer crítica ao Lula, mesmo as que ele merece.

Enfim: antes de entrar num coro, olhe em volta.

Pois bem: ainda que houvesse motivos para o impeachment de Dilma, eu não deixaria de ficar em casa cozinhando para ir ao protesto (nem sei se terá em Ijuí). Pois como bem alerta LFV, antes de entrar num coro eu olho em volta. E nesse em específico, eu me depararia exatamente com o que há de mais preconceituoso e reacionário no país. E como diz o texto (numa aparente contradição de LFV mas que não entendo como tal), não seria na companhia da direita que eu me manifestaria contra qualquer governo: não é “a minha turma”. Jamais serei cúmplice dessa gente que defende “meritocracia” (seria um sistema justo, sem aspas, se a todos fossem dadas as mesmas condições), fim dos programas sociais, expulsão de imigrantes, pena de morte, redução da maioridade penal, e, o pior de tudo, a tal “intervenção militar” (que jamais será “constitucional”). O que deixa bem claro que tolerância com o diferente não é o forte dessa gente.


O negócio, então, é zoar no dia de hoje. E já que a “moda” é protestar “contra a corrupção” vestindo a camisa da Seleção (com o escudo da super-correta e nada corrupta CBF), agora vai ter 7 gols da Alemanha (pois essa gente merece muito os 7 a 1). Se reclamar, vai ter 14. Se reclamar de novo, vai ter 28!

Quando parece que o tempo se acelera

Quase saí do Facebook no final de maio. A permanência se deve à minha amiga Rita, que nunca vi pessoalmente (moramos a mil quilômetros de distância) mas que conheço graças ao Facebook e, várias vezes, me “salvou o dia” com suas postagens divertidas e que também recebem comentários sensacionais; se toda a internet fosse como a linha do tempo da Rita, aquela máxima “não leia os comentários” não faria sentido.

Mas nem sempre os posts da Rita são engraçados. Quando é sobre coisa ruim, várias vezes ela compartilhou com o seguinte comentário: “acelera, meteoro” (ou a hashtag #acelerameteoro). Pois tem certas coisas que nos deixam numa desesperança tão grande que a única “esperança” passa a ser o apocalipse.

No que já se passou de 2015, vários episódios foram dignos de um pedido para o meteoro “pisar no acelerador”. Protestos direitosos (que, aliás, voltam no próximo domingo, recheados de pessoas que fazem valer a máxima “não leia os comentários”), terceirizações, redução da maioridade penal, parcelamento de salários… E ainda por cima vem aí uma “lei antiterrorismo” que poderá transformar uma simples manifestação em “ato terrorista” (e claro que não será a da direita que tira selfie com a PM).

Mas não. Quem “acelerou” foi o tempo, parece. O ano está voando: recém começou, “pisquei o olho” e já estamos em agosto. E com o calor que anda fazendo, chego a pensar que o calendário está errado e o mês atual é dezembro: cadê as decorações de Natal, as propagandas melosas, os cumprimentos cheios de falsidade?

Aliás, se o Natal fosse semana que vem eu nem reclamaria, ao contrário dos últimos anos. Pois além de passar mais tempo perto da minha avó, da minha mãe, do meu pai e do meu irmão, também seria um sinal de que o ano está acabando.

Mas não sou muito otimista quanto a 2016. Espero que pelo menos tenha inverno (2014 e 2015 somados não dão sequer um outono). E torço muito para que a Rita nunca desative sua conta do Facebook: se ela sair, só me restará torcer pelo meteoro.


Ah, mas não dá para só reclamar de 2015: eu nunca tinha visto um 5 a 0 em Gre-Nal. E ainda bem que quem ganhou foi o Grêmio!

Pastor Everaldo e a contradição de muitos liberais brasileiros

Fazia anos que eu não via um candidato a presidente defender abertamente as privatizações – caso de Everaldo Dias Pereira, o Pastor Everaldo, que concorre à presidência pelo PSC. Ontem, na entrevista ao Jornal Nacional, disse que privatizará a Petrobras caso seja eleito. Além de outras empresas estatais que ele considere como “foco de corrupção”.

Após o governo de Fernando Henrique Cardoso, que privatizou várias estatais e terminou com índices de reprovação que superavam os de aprovação, “privatização” virou uma espécie de “palavrão” no dicionário político brasileiro. Na campanha eleitoral de 2006 tivemos dois exemplos disso. O primeiro, foi na disputa pelo governo do Rio Grande do Sul: a candidata Yeda Crusius (PSDB) tinha como vice o empresário Paulo Afonso Feijó (então PFL, depois DEM), que defendia abertamente as privatizações; a coordenação de campanha procurou forçá-lo a não falar o “palavrão”, temerosa de perder votos; no fim Yeda foi eleita, mas ao assumir o governo já tinha Feijó quase como um “opositor”. O outro foi na disputa pela presidência: o candidato tucano Geraldo Alckmin chegou a vestir uma jaqueta com logotipos de várias estatais, para tentar convencer os trabalhadores delas de que não tinha a pretensão de vender as empresas; não adiantou, e Alckmin conseguiu a façanha de perder obtendo menos votos no segundo turno do que recebera no primeiro.

Everaldo, por sua vez, não esconde o que pensa. Talvez pela baixíssima probabilidade de ser eleito, o que dá a qualquer candidato na mesma situação a tranquilidade de que não precisará cumprir sua promessa: lembro que anos atrás o PCO defendia em seus programas eleitorais o salário mínimo de R$ 1.500, algo que acharia sensacional mas sei que é politicamente inviável ainda nos dias de hoje. Mas a diferença é que Everaldo não é o PCO (esquerda), mas sim, representante da direita mais conservadora. Fosse eleito, não teria dificuldade alguma de aprovar suas propostas: independente de quem vença a disputa presidencial, me parece quase certo que, infelizmente, o Congresso que surgirá das urnas em outubro será bem mais conservador que o atual.

Pois as propostas de Everaldo não se resumem à retomada das privatizações. Na realidade, elas refletem bem uma das maiores contradições de parte considerável dos ditos “liberais” brasileiros, que tanto discursam a favor da “liberdade”: defendem o “Estado mínimo” na economia, mas em compensação pregam a intervenção estatal em assuntos de ordem realmente privada. Sim: como seria de se esperar de um candidato conservador e que prega a “defesa da família” (fica a dica para qualquer um que esteja concorrendo e queira abrir mão do meu voto: fale em “defesa da família”), Everaldo é contra o casamento homossexual, a legalização do aborto e das drogas. Até aí, nenhuma novidade.

Mas o fato é que temos uma candidatura de um típico liberal brasileiro, com um discurso que prioriza a “liberdade” a despeito da igualdade – como se fosse possível real liberdade em uma sociedade desigual – e ao mesmo tempo contrário à liberdade de homossexuais se casarem, de mulheres interromperem uma gravidez indesejada e de pessoas adultas decidirem se drogar com uma substância que não seja álcool, nicotina ou ritalina. Se há algo positivo nisso (ele não esconde o que realmente defende), por outro lado também mostra que a direita mais conservadora está perdendo a vergonha de ser “autêntica” (além de Everaldo há também o candidato do PRTB, Levy Fidélix, que quer “endireitar” o Brasil), justamente por perceber que isso não significa mais votações baixíssimas – o que é muito preocupante.


“Mas eu sou contra o aborto, o casamento homossexual e as drogas”, alguém poderá dizer. Tudo bem: isso se chama liberdade de opinião. Mas, pense um pouquinho: nem todas as pessoas são obrigadas a pensar como você.

A mulher grávida que aborta não “assassina” um bebê: ela interrompe uma gravidez, o que leva à morte o feto que carrega em seu útero. Cientificamente falando, é isso mesmo: aquele pequeno organismo não é um bebê (ou seja, um pequeno ser humano, que vive por conta própria mesmo que precisando de cuidados), é como se fosse qualquer outro órgão do corpo da mulher, tal como o apêndice (que quando inflama sempre é removido cirurgicamente). Claro que, no caso de uma mulher grávida e que deseja ser mãe, é diferente: metaforicamente, ela já se sente mãe de um bebê, mesmo que cientificamente ainda não seja. Mas para a mulher que tem uma gravidez indesejada (pelos mais variados motivos), aquele feto é um tormento e poderá continuar a sê-lo mesmo depois de bebê.

Você é heterossexual e por motivos óbvios não pretende casar com alguém do mesmo sexo? Eu também.

Toma uma cervejinha todas as semanas? Pois, assim como eu, você está usando drogas… A diferença é que a nossa não é proibida. (E, inclusive, é causa de incontáveis acidentes de trânsito, que todos os anos matam milhares de pessoas em nosso país.)

Repare que garantir tais direitos (aborto, casamento homossexual e liberação de drogas como a maconha) em nada nos prejudica. Só prestar atenção no que acontece com os já garantidos: drogas como álcool e tabaco são legalizadas e ninguém é obrigado a beber ou fumar, inúmeros casais héteros optam por não formalizarem a união mesmo que tenham direito a tal… Ou seja: o aborto legalizado não impedirá mulher alguma de ser mãe, o casamento homossexual não obrigará ninguém a deixar de ser hétero, assim como ter o direito de fumar maconha é exatamente isso, direito, não obrigação.

Ou seja, se você é mulher e contra o aborto, é só não interromper uma gravidez mesmo que seja indesejada; se é contra o casamento homossexual, não case com alguém do mesmo sexo; se é contra as drogas, antes de tudo seja coerente e nunca mais ponha na boca um cigarro ou um gole de cerveja. Mas para isso não é preciso obrigar todas as pessoas a fazerem o mesmo.

Grenalização e generalização

Um dito popular do futebol gaúcho é “Gre-Nal arruma ou desarruma a casa”. Impressionante como, de fato, ele acaba fazendo sentido, devido ao enorme e desproporcional peso que tem tal partida para os dois principais clubes do Rio Grande do Sul.

Poderia citar como exemplo o Grêmio em 2014: o “divisor de águas” do time na temporada foi o Gre-Nal decisivo do Campeonato Gaúcho, perdido por 4 a 1 porque o Internacional “tirou o pé”, poupando o Tricolor de uma goleada histórica. Antes o Grêmio vinha relativamente bem, com boas atuações na Libertadores; depois, nada mais deu certo e o time foi eliminado nas oitavas-de-final do certame continental. Mas nada demonstra de forma mais clara a exagerada importância dada ao clássico do que o acontecido em 2009: após derrota por 2 a 1 e eliminação no Gauchão daquele ano, a direção gremista demitiu Celso Roth – que pode não ser o técnico dos sonhos de ninguém, mas é preciso ressaltar que o Grêmio não só estava invicto na Libertadores como também fazia a melhor campanha da fase de grupos. Todo um discurso de priorizar a competição continental foi por água abaixo devido a um jogo válido pelo menos importante certame daquele momento, só porque era Gre-Nal. O resto da história, todo gremista lembra: 40 dias de espera por Paulo Autuori e eliminação na semifinal contra o Cruzeiro, primeiro adversário realmente forte enfrentado – não digo que Roth levaria o Grêmio à final, mas ao menos daria mais trabalho ao time mineiro (com uma boa retranca o Tricolor não teria levado 3 a 1 no Mineirão).

Mas, para além do clássico propriamente dito, há a exagerada rivalidade que ultrapassa os limites daquela chamada “sadia” (que foi o motor do crescimento da dupla Gre-Nal, ultrapassando o âmbito regional). Muitas vezes, se dá tamanha importância ao rival que isso acaba por mascarar defeitos ou virtudes. Em 2003, por exemplo, o Grêmio fez um Campeonato Brasileiro horrível e passou um turno inteiro na zona do rebaixamento, enquanto o Internacional chegou a liderar o certame e quase se classificou para a Libertadores pela primeira vez em 11 anos. Só que na última rodada fomos nós gremistas que festejamos e ainda tocamos flauta: o Grêmio escapou da queda enquanto o Inter levou 5 a 0 do São Caetano quando um empate bastava para ir à Libertadores. Aquela rodada tão “anos 90” me deu a errônea impressão de que 2003 era um “ponto fora da reta”: não percebia que outra linha já estava sendo traçada, como os anos seguintes demonstrariam de maneira tão dolorosa.

Costuma-se dizer que o Rio Grande do Sul é terra de extremos, sem meio-termo. É um fenômeno apelidado de “grenalização”, em óbvia referência à rivalidade que faz parecer que tudo gira em torno de Grêmio e Internacional no tocante ao futebol, como se não houvesse mais nenhum clube no Estado (não por acaso torcidas como a do Brasil de Pelotas costumam levar aos estádios faixas onde se lê “anti-grenal”). Mas o clima de “8 ou 80” não se resume ao futebol. A política, que já teve guerras civis entre chimangos e maragatos no final do Século XIX e no início do XX, hoje se divide aparentemente entre o PT e o “anti-PT”, sendo que o último nem sempre é o mesmo partido: na maioria das vezes o(a) candidato(a) que encarnava o “anti-petismo” era do PMDB, mas já foi do PSDB (como acontece a nível nacional) e atualmente é do PP (que a nível nacional, ironicamente, apoia o governo do PT). Inúmeras questões no Rio Grande do Sul, para além da disputa partidária, geram debates acirrados entre “dois lados”, como se apenas duas opções fossem possíveis.

Quem dera tal prática ser “privilégio gaúcho”. Mas a grenalização está muito presente no debate de ideias em toda parte. Por exemplo, agora estamos em campanha eleitoral no Brasil, e para muitas pessoas isso se resume a uma insana disputa “entre o bem e o mal”, na qual literalmente “vale tudo”. Por anos os setores mais raivosos da direita apelaram para a baixaria contra os candidatos da esquerda (“Lula bêbado”, “Dilma terrorista” etc.) de modo a pintá-los como “a encarnação do mal”; atualmente é utilizado o “terrorismo econômico” devido à possibilidade de Dilma Rousseff ser reeleita no primeiro turno. Mas agora vemos, infelizmente, parte da esquerda também aderindo a esse modelo de disputa “entre o bem e o mal”: nada mais decepcionante (para dizer o mínimo) do que militantes petistas apelarem para a velha “moral de cuecas” conservadora para atacar Aécio Neves, aplicando exatamente os mesmos métodos tão criticados quando usados pelo “lado de lá”; entre setores da esquerda críticos ao governo Dilma (e razões à esquerda para criticar o governo não faltam) o clima de “Gre-Nal” também é forte, com um impressionante e assustador sectarismo. Sem contar a direita mais delirante, que considera até o PSDB “esquerdista”.

Vamos para a política internacional, e é a mesma coisa. Na questão da Palestina, então, a discussão chega às raias do absurdo. Sou favorável à causa palestina e condeno os ataques israelenses, mas por conta disso os mais cegos defensores de Israel dirão que eu defendo o Hamas e sou “antissemita”, como se criticar o Estado de Israel fosse o mesmo que pregar ódio aos judeus e defender o Hamas (aliás, como se todos os palestinos fossem apoiadores de tal organização). Ao mesmo tempo, em caixas de comentários por aí já vi críticos a Israel emitindo opiniões pavorosas, essas sim pregando ódio aos judeus (com direito a um mentecapto inclusive insinuar que o Holocausto não teria acontecido, o que ofende a inteligência de qualquer pessoa com o mínimo conhecimento de História); sem contar que inúmeros judeus condenam os ataques contra o povo palestino, e que muitos jovens israelenses se recusam a prestar serviço militar pelo mesmo motivo. Ou seja, uma questão que é muito mais complexa do que parece acaba reduzida a este estúpido “8 ou 80” – o que, vamos combinar, jamais trará a paz.

O maniqueísmo, a divisão de tudo em “dois lados” (sendo o nosso obviamente correspondente ao “bem”), só serve para perpetuar a ignorância e o ódio. Além de mascarar nossos próprios defeitos – e as virtudes dos outros. A grenalização generaliza, nos leva a esquecer a pluralidade e a acreditar numa falsa dualidade, além de, consequentemente, empobrecer a discussão de ideias. Afinal, é mais fácil acusar o adversário de ser isto, isso e aquilo (afinal, ele é “mau”) do que realmente debater.

Oito ou oitenta

Vivemos tempos de extremos. Não há espaço para o meio-termo. Talvez a temperatura por aqui seja apenas um reflexo disso: este verão é um dos mais rigorosos de todos os tempos, nos submetendo a um calor desolador cuja única escapatória parece ser, literalmente, a fuga em direção ao extremo sul do continente. Novamente, os extremos.

É tempo de extremos também no “debate” político nacional. Com aspas, pois o que menos há, hoje em dia, é debate. É um cenário de polarização, de “oito ou oitenta”, com pouco espaço para outras nuances e, principalmente, troca de ideias.

Bem fácil notar isso nas atitudes das militâncias de PT e PSDB: quem não é apoiador cego do governo, na visão petista, vira “tucano”, mesmo que seja mais de esquerda que o próprio PT. E para tucanos e outros de direita, quem é de esquerda é “PT”, mesmo que seja o cara ao qual recém nos referimos, que não apoia cegamente o governo (ou não apoia de jeito nenhum). Sem contar o insano “anticomunismo” de alguns, que acreditam piamente que o Brasil está prestes a sofrer um “golpe comunista”.

Não por acaso, o vídeo abaixo é quase perfeito, pois tirando as camisas “comunistas” do PT (visto que o partido está muito longe disso), dá uma amostra do que virou o “debate” político no Brasil polarizado: aquelas discussões sem sentido sobre futebol. Se substituírem o horário eleitoral gratuito por gritos de “torcidas organizadas”, não fará diferença alguma em termos de discussão de ideias.

Feliz 2014?

Peço desculpas aos que estão naquele clima de euforia pelo ano novo, mas eu não embarco junto. Ainda mais que, definitivamente, não tenho mais saco para festas de final de ano. Muito embora se possa dizer que 2013 é daqueles anos que, da mesma forma que 1968, não terminam com o 31 de dezembro.

A maior parte das pessoas deve pensar em 2014 e lembrar da Copa do Mundo. “Imagina na Copa”, eis o bordão preferido de muitos – e que, convenhamos, faz bastante sentido. Será uma época em que teremos muito futebol, mas também o estado de exceção. Foram-se os tempos em que o início de um ano de Copa me empolgava.

O ano que se inicia também terá eleição presidencial. Lembram do nojo que foi 2010? Foi uma campanha marcada mais por “denuncismo” e ataques do que por discussão de propostas. E em 2014 tende a ser pior: o PT completará 12 anos no governo – o que não quer dizer 12 anos sem a direita lá, dadas as alianças pela “governabilidade” (Renan Calheiros e Marco Feliciano estão aí para provar); a oposição de direita (PSDB/DEM/PPS), que não tem projeto, fará de tudo em termos de baixaria (que será igualmente respondida), pois é o que lhe resta. Então, nos preparemos para os panfletos apócrifos, discussões vazias… Nada surpreendente, dada a atual “padronização” das campanhas eleitorais – como mostra o vídeo abaixo, uma genial sátira que reflete muito bem o que se viu nas eleições municipais de 2012.

“Tem também eleições para outros cargos”, alguém lembrará. Sim, também elegeremos governadores, senadores, deputados federais e estaduais. Então lembro de várias análises que li e que me preocupam: a bancada evangélica no Congresso, que tem pavor do Estado laico, deve crescer na próxima eleição.

Fica a dúvida: torcer para 2014 passar correndo? Pedir para ficar em 2013?

Bom, acho que só resta mesmo tentar fazer alguma coisa para salvar o ano que se inicia, e quem sabe as piores previsões não se confirmem. Dessa forma, será possível que tenhamos, realmente, um feliz 2014.

Vencemos a corrupção… Será?

A direita, de forma geral, está em êxtase. Em pleno feriado da Proclamação da República, o Supremo Tribunal Federal determinou a prisão dos condenados na Ação Penal 470, o popular “julgamento do mensalão”.

Dentre os presos se encontra o ex-ministro José Dirceu: condenado judicialmente em 2012, na prática pode-se dizer que sua condenação se deu em 2005, pela imprensa. Pois alguém consegue imaginar a indignação que tomaria conta do país caso Dirceu fosse absolvido? A condenação e a posterior prisão do ex-ministro foram celebradas como uma vitória sobre a corrupção.

Porém, faltou algo fundamental: provas. José Dirceu foi condenado com base em uma teoria jurídica chamada “domínio do fato”, que teria sido formulada por um autor alemão, mas que sequer é aplicada na Alemanha. Com isso, subverteu-se o princípio fundamental de que a dúvida favorece ao réu. Ou seja, de que ninguém tem de ser obrigado a provar sua inocência; ao contrário, o ônus da prova cabe a quem acusa. Com isso, é verdade, corre-se o risco de que um “crime perfeito” (ou seja, aquele em que os autores conseguem apagar todos os vestígios) acabe impune, mas também se reduz a possibilidade de condenações injustas e que se dão em nome de outros interesses alheios à legalidade.

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“Esquerdopata”, “petralha”, “corruPTo”, “esquerdalha”, já deve estar querendo escrever o típico comentarista “anti-corrupção”. Só espero que o mesmo não esqueça de também dirigir suas raivosas manifestações a Ives Gandra Martins, conservador e notório adversário do PT, mas também jurista, e que como tal defende a aplicação da lei, não daquilo que é ditado pela tal de “opinião pública” (da qual a “mídia imparcial” se julga representante).

Ah, e que também não esqueça de se mobilizar para que outros escândalos de corrupção (como, por exemplo, o mensalão tucano) sejam julgados de forma semelhante.