Hoje é, aparentemente, dia de eleição presidencial nos Estados Unidos.
O “aparentemente” se refere não ao fato de que boa parte do eleitorado votou antecipadamente (por medo de aglomerações nos locais de votação em meio à pandemia), mas sim à existência do famigerado e anacrônico colégio eleitoral, onde ocorre formalmente a escolha do presidente.
Em 2016, antes de saber quais seriam os resultados, comentei que exatos 27 anos após a abertura do Muro de Berlim (fato ocorrido em 9 de novembro de 1989) os jornais do dia poderiam ter como manchete principal a vitória eleitoral nos Estados Unidos de um candidato à presidência, Donald Trump, que propunha a construção de um muro na fronteira com o México.
Acabou acontecendo: Trump foi eleito, apesar de ter recebido quase 3 milhões de votos a menos que Hillary Clinton. Coisas da “democracia” estadunidense: não é necessário respaldo popular, basta ter a maioria absoluta no colégio eleitoral. E com exceção de Maine e Nebraska, não há proporcionalidade: o vencedor leva todos os delegados do estado em questão, mesmo que ganhe por diferença mínima e sem precisar da maioria absoluta (mais de 50%) do eleitorado estadual.
É o que causa tal distorção que, embora não ocorra com frequência, também não foi fato inédito em 2016: já acontecera em 1876, 1888 e 2000. (Também há o caso de 1824, quando o mais votado pelo povo também recebeu mais “votos eleitorais” no colégio, mas como não teve maioria absoluta coube à Câmara de Representantes a escolha do presidente, e o eleito foi o segundo colocado.)
Além disso, a não exigência de uma maioria absoluta praticamente inviabiliza o surgimento de uma “terceira via” aos partidos Democrata e Republicano. Ainda que eleições geralmente tenham um caráter “plebiscitário” sobre o governo do momento (seja com o presidente concorrendo à reeleição ou tentando fazer seu sucessor), em casos como o Brasil a previsão de segundo turno caso o mais votado não ultrapasse os 50% dá ao eleitorado mais de uma opção que não seja governista; já nos Estados Unidos vota-se em democratas por rejeição a republicanos e vice-versa. Tanto que se diz que o maior mérito de Joe Biden é não ser Donald Trump.
O triunfo do socialista Salvador Allende na eleição presidencial chilena de 1970 não agradou nem um pouco aos Estados Unidos, então governados pelo republicano Richard Nixon. Henry Kissinger, então Secretário de Estado, disse que não se podia permitir que um país se tornasse comunista pela “irresponsabilidade de seu próprio povo”. Infame mas de certa forma coerente com o histórico imperialista: se nos Estados Unidos valia mais o colégio eleitoral que a vontade popular, no Chile deveria ser igual.
Em 11 de setembro de 1973, Allende foi deposto por um violento golpe militar, e preferiu cometer suicídio a se entregar e virar um troféu para os traidores do povo chileno. Nascia assim mais uma ditadura “em nome da democracia”, patrocinada pelos interesses dos Estados Unidos.
Agora, ironicamente é a “democracia” estadunidense que está em xeque. Parafraseando Kissinger (mas neste caso falando com correção), um país pode dar mais um passo rumo ao fascismo por irresponsabilidade de boa parte de seu povo – mas que não necessariamente é a maioria.