Por uma enorme ironia foi via Facebook, na sua seção “lembranças”, que atentei para o fato de que no último dia 19 de fevereiro completaram-se três anos do falecimento de Umberto Eco (1932–2016). O escritor italiano era um grande crítico do papel da tecnologia na disseminação da informação. Uma de suas declarações mais famosas acerca do tema foi dada em 2015, durante evento em que recebeu o título de doutor honoris causa em comunicação e cultura na Universidade de Turim:
As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.
Quando ele se foi, já era percebido o efeito negativo das mídias sociais em nossa vida. Na época o Brasil discutia se a presidenta Dilma Rousseff seria ou não deposta pelo Congresso, no impeachment promovido por Eduardo Cunha: um ano antes disso já se falava do assunto, em especial entre eleitores do candidato derrotado no segundo turno da eleição de 2014, Aécio Neves, que acreditavam piamente que se Dilma saísse quem assumiria seria ele e não o vice-presidente Michel Temer; no WhatsApp eram difundidas inúmeras mensagens convocatórias para manifestações pró-impeachment, e uma delas falava em “usar verde e amarelo” para derrubar Dilma “igual a como se fez com Collor em 1989”.
O problema do texto era que, além de mal-escrito, continha informações incorretas: o impeachment de Fernando Collor foi em 1992, e os manifestantes usaram preto em reação a uma declaração do presidente pedindo que o povo saísse às ruas vestindo verde e amarelo para demonstrar apoio ao seu governo. Vale lembrar também que quem assumiu a presidência foi o vice Itamar Franco e não Lula, candidato derrotado por Collor no segundo turno da eleição presidencial — foi isso que aconteceu em 1989.
Mas ainda soava como pessimismo exagerado pensar que Donald Trump venceria a eleição presidencial nos Estados Unidos em novembro daquele mesmo ano de 2016 — e muito menos que o Brasil elegeria Jair Bolsonaro em 2018. Eram dois caras de discursos tão repulsivos, tão toscos, que parecia óbvio que eles mesmos “se afundariam” e seriam derrotados.
Só que menosprezamos as mídias sociais (com seus algoritmos), que tiveram papel fundamental na difusão de incontáveis mentiras (as chamadas fake news) que favoreceram tais candidatos. E, principalmente, se demorou a perceber que a tosquice deles era muito representativa da “legião de imbecis” à qual Umberto Eco se referia. Ainda que Trump não tenha sido o candidato mais votado pelo povo nos Estados Unidos (venceu graças ao anacrônico sistema eleitoral por lá utilizado), na época já se falava das chamadas “maiorias silenciosas”: pessoas com ideias absurdas que não as expunham pelo temor de virarem motivo de chacota. Ou seria possível levar a sério alguém que dissesse que vacinas matam ou, pior ainda, que a Terra é plana?
Infelizmente não são tão poucas pessoas que acreditam em tais absurdos. Impossível não lembrar de outro escritor, este brasileiro, chamado Nelson Rodrigues (1912–1980), que certa feita disse que os idiotas dominariam o mundo não pela qualidade e sim pela quantidade. Em especial, de um parágrafo de sua crônica “O Homem Fatal”:
De repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: a vergonhosa inferioridade numérica dos “melhores”. Para um “gênio”, 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3 milhões de cretinos. E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico: trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em quinze minutos, mugia, ali, uma massa de meio milhão.
O texto de Nelson Rodrigues foi escrito muito antes de existirem Facebook, WhatsApp, YouTube e similares — quando o cronista faleceu, Mark Zuckerberg sequer havia nascido. Na época, certos idiotas já tinham “palanque” e audiência: eram “formadores de opinião” que seguiam praticamente todos a mesma linha de pensamento, falando (e sendo lidos, ouvidos e vistos) em jornais, rádios e televisões. Mas era preciso ter alguma formação, algum conhecimento, que justificasse sua posição de destaque. E o fundamental: o papel deles era apenas opinar sobre acontecimentos que, na maioria das vezes, eram reais e não inventados.
É verdade que já se espalhavam mentiras antes de existirem mídias sociais. Mas elas dificilmente causavam um grande prejuízo à sociedade como está sendo verificado atualmente. Hoje em dia, é fácil escrever um texto no Facebook ou gravar um vídeo no YouTube dizendo que tudo o que a ciência já comprovou não passa de uma “grande conspiração para esconder a verdade” — as “teorias conspiratórias” sempre são um prato cheio para incautos, que as repassam sem checar se aquilo é verdadeiro ou não.
E assim, se chegou à situação absurda de ouvir gente dizendo que a Terra é plana, que aquecimento global é “conspiração marxista”, e ainda corremos o risco do retorno de doenças que foram erradicadas por campanhas de vacinação… Vivemos uma época na qual os argumentos científicos, que por sua condição precisam de bastante embasamento, são chamados de “opinião”. Sem contar o discurso de ódio, que não passa mais por nenhum “filtro” — ainda que boa parte dele seja expressa em caixas de comentários de grandes portais de notícia sem que haja moderação alguma por parte dos editores.
Faço minhas as palavras da professora Elika Takimoto, do tuíte cuja captura abriu este texto: que tempos.