Para cozinhar, é claro. Pois neste domingo, fazer comida é um ato político. Mesmo que, no meu caso, tenha cozinhado apenas um ovo e uma porção de arroz (que, inclusive, eu poderia ter feito no sábado à noite mas deixei para o domingo justamente pelo caráter político da coisa).
“Panelaço” é coisa séria. Se consagrou como um protesto contra a pobreza e a falta de perspectivas – situações que deixam muitas pessoas com as panelas vazias, por falta de grana para comprar comida. Não por acaso, é uma forma de manifestação tipicamente latino-americana – e que chamou a atenção quando chegou à Europa, nos protestos contra a crise financeira na Islândia em 2009.
Mas sempre tem gente que desvirtua as coisas. No caso do “panelaço”, é gente que não passa o drama de estar com as panelas vazias por falta de dinheiro. Os sem-noção aqui do Brasil não são fato novo: na Venezuela, muito se bateu panela contra Hugo Chávez – e tal como aqui, não eram os mais pobres que o faziam. Não por acaso, enquanto rolava “panelaço” na Zona Sul do Rio de Janeiro, no Complexo do Alemão as panelas estavam sobre o fogão cumprindo sua função primordial de fazer comida.
Isso não quer dizer que vá tudo bem com o país. É fato que há inflação: mesmo que ela seja “brincadeira de criança” em comparação com o que tínhamos no final dos anos 80 e no início dos 90, é algo que complica a vida de quem ganha menos. O desemprego subiu: mesmo que ainda possa ser considerado baixo se fizermos uma comparação com outros países e inclusive com o Brasil de um passado não tão distante (10, 15 anos atrás…), causa preocupação a quem tem suas contas a pagar. Toda hora se descobre um novo escândalo de corrupção: a galera esquece que até não tanto tempo atrás o mais comum era as denúncias serem engavetadas e não investigadas, mas isso não inocenta o PT de ter aderido ao esquema apenas “porque os outros também faziam”.
Mas ainda assim me recuso a aderir ao coro do “Fora Dilma”. Primeiro, porque nem faz um ano que ela foi reeleita, e assim é descarado que protestos como os de hoje são puro chororô de quem perdeu a eleição e quer ganhar na marra. Coisa de criança mimada que quando não vê sua vontade atendida começa a espernear e a fazer escândalo.
Mas tem outro motivo também: mesmo que apareçam indícios que comprometam Dilma e assim justifiquem a abertura de um processo de impeachment, não tenho como participar de protestos como os de hoje. Um texto escrito por Luis Fernando Veríssimo em 2007 ajuda a explicar (aliás, basta trocar “Lula” por “Dilma” para o texto ficar totalmente atual):
Cumplicidade
Uma comprida palavra em alemão (há uma comprida palavra em alemão para tudo) descreve a “guerra de mentira” que começou com os primeiros avanços da Alemanha nazista sobre seus vizinhos. A pouca resistência aos ataques e o entendimento com Hitler buscado pela diplomacia européia mesmo quando os tanques já rolavam se explicam pelo temor comum ao comunismo. A ameaça maior vinha do Leste, dos bolcheviques, e da subversão interna. Só o fascismo em marcha poderia enfrentá-la. Assim muita gente boa escolheu Hitler como o mal menor. Ou, comparado a Stalin, o mau menor. Era notório o entusiasmo pelo nazismo em setores da aristocracia inglesa, por exemplo, e dizem até que o rei Edward VIII foi obrigado a renunciar não só pelo seu amor a uma plebéia mas pela sua simpatia à suástica. Não tardou para Hitler desiludir seus apologistas e a guerra falsa se transformar em guerra mesmo, todos contra o fascismo. Mas por algum tempo os nazistas tiveram seu coro de admiradores bem-intencionados na Europa e no resto do mundo – inclusive no Brasil do Estado Novo. Mais tarde estes veriam, em retrospecto, do que exatamente tinham sido cúmplices sem saber. Na hora, aderir ao coro parecia a coisa certa.
Comunistas aqui e no resto do mundo tiveram experiência parecida: apegarem-se, sem fazer perguntas, ao seu ideal, que em muitos casos nascera da oposição ao fascismo, mesmo já sabendo que o ideal estava sendo desvirtuado pela experiência soviética, foi uma opção pela cumplicidade. Fosse por sentimentalismo, ingenuidade ou convicção, quem continuou fiel à ortodoxia comunista foi cúmplice dos crimes do stalinismo. A coisa certa teria sido pular fora do coro, inclusive para preservar o ideal.
Se esses dois exemplos ensinam alguma coisa é isto: antes de participar de um coro, veja quem estará do seu lado. No Brasil do Lula é grande a tentação de entrar no coro que vaia o presidente. Ao seu lado no coro poderá estar alguém que pensa como você, que também acha que Lula ainda não fez o que precisa fazer e que há muita mutreta a ser explicada e muita coisa a ser vaiada. Mas olhe os outros. Veja onde você está metido, com quem está fazendo coro, de quem está sendo cúmplice. A companhia do que há de mais preconceituoso e reacionário no país inibe qualquer crítica ao Lula, mesmo as que ele merece.
Enfim: antes de entrar num coro, olhe em volta.
Pois bem: ainda que houvesse motivos para o impeachment de Dilma, eu não deixaria de ficar em casa cozinhando para ir ao protesto (nem sei se terá em Ijuí). Pois como bem alerta LFV, antes de entrar num coro eu olho em volta. E nesse em específico, eu me depararia exatamente com o que há de mais preconceituoso e reacionário no país. E como diz o texto (numa aparente contradição de LFV mas que não entendo como tal), não seria na companhia da direita que eu me manifestaria contra qualquer governo: não é “a minha turma”. Jamais serei cúmplice dessa gente que defende “meritocracia” (seria um sistema justo, sem aspas, se a todos fossem dadas as mesmas condições), fim dos programas sociais, expulsão de imigrantes, pena de morte, redução da maioridade penal, e, o pior de tudo, a tal “intervenção militar” (que jamais será “constitucional”). O que deixa bem claro que tolerância com o diferente não é o forte dessa gente.
O negócio, então, é zoar no dia de hoje. E já que a “moda” é protestar “contra a corrupção” vestindo a camisa da Seleção (com o escudo da super-correta e nada corrupta CBF), agora vai ter 7 gols da Alemanha (pois essa gente merece muito os 7 a 1). Se reclamar, vai ter 14. Se reclamar de novo, vai ter 28!