Assisti semana passada ao filme chileno “No”, de Pablo Larráin, que concorre ao Oscar de melhor filme de língua não-inglesa. Baseado em fatos reais, “No” relembra a campanha do “não” no plebiscito de 1988 no Chile, quando o povo rejeitou a permanência do ditador Augusto Pinochet no governo por mais oito anos. Larráin usou câmeras semelhantes às utilizadas na década de 1980, para que o filme lembrasse as transmissões da televisão chilena na época.
Em 1980, uma nova constituição para o Chile fora aprovada em um referendo marcado por denúncias de fraude. Esta previa um “período de transição” de oito anos a partir de sua entrada em vigor, em 11 de março de 1981, no qual o país seria governado por Pinochet. Ao final deste período, os militares deveriam indicar uma pessoa para ocupar a presidência pelos oito anos seguintes (ou seja, até 1997): o escolhido foi o próprio Pinochet.
Um plebiscito foi convocado para o dia 5 de outubro de 1988, em que o povo deveria apoiar ou rejeitar a permanência do ditador no poder: caso a opção “não” vencesse, Pinochet teria seu “mandato” prorrogado até 11 de março de 1990, quando entregaria o governo a um presidente eleito diretamente. Haveria 15 minutos diários de propaganda eleitoral na televisão para ambas as opções, mas não era uma situação de igualdade: enquanto a campanha do “não” se resumiria aos 15 minutos, o “sim” era favorecido pela mídia, controlada pelo governo.
A princípio, acreditava-se que o plebiscito era “jogo de cartas marcadas”. Afinal, era promovido por um regime ditatorial, que não pouparia esforços para se perpetuar. O fato de atrair as atenções do mundo, se por um lado ajudava a diminuir a desconfiança quanto à lisura do processo, por outro também despertava o temor de que, caso o “sim” vencesse, a própria oposição acabasse legitimando Pinochet, por ter ido votar. Assim, havia uma forte tendência a se boicotar o plebiscito.
Porém, a possibilidade de que Pinochet permanecesse no poder por mais oito anos era um motivador a que se fosse votar. É aqui que “entra em jogo” René Saavedra (Gael García Bernal), um talentoso publicitário: filho de um exilado político, ele é convidado a ajudar a campanha do “não”, de modo a que a oposição (agrupada na Concertación de Partidos por el No) participe do plebiscito com chances de vencê-lo.
Saavedra decide transformar a campanha, que seria focada na denúncia dos crimes da ditadura, em algo “vendável”, o que é desagradável para alguns partidários do “não” – que inclusive ficam ofendidos, já que perderam pessoas muito próximas durante a repressão mais severa. O argumento de Saavedra se baseia nas pesquisas que apontam enorme quantidade de eleitores indecisos (tanto os que não sabem em que opção votar, como os que pensam se vale a pena comparecer às urnas): é preciso convencê-los oferecendo esperança em contraposição ao medo reinante no Chile nos 15 anos anteriores, mas ao mesmo tempo denunciando tudo o que está errado no país.
A campanha do “sim” oferece “um país ganhador”; a princípio, destaca a “conversão” de Pinochet à “democracia” (vamos combinar que depois de eliminar boa parte da oposição, é muito fácil ser “democrata”) e o crescimento econômico (para os que não sabem, o primeiro país a adotar o neoliberalismo foi o Chile de Pinochet), a despeito da manutenção da pobreza e da desigualdade. Surpreendidos pela campanha oposicionista, os partidários do “sim” reagem. O dono da agência em que Saavedra trabalha, Luis Guzmán (Alfredo Castro), é chamado para comandar a campanha governista, que passa a apelar para o medo dos “marxistas”, em alusão aos movimentos de luta armada que empreenderam ações violentas e também à crise final do governo de Salvador Allende (quando o Chile foi sufocado economicamente, para evitar que “se tornasse comunista devido à irresponsabilidade de seu próprio povo”, nas palavras de Henry Kissinger).
A campanha do “não”, ao contrário do que se espera, mantém o tom “alegre” e bem humorado. Afinal, não basta apenas atacar o governo: é preciso convencer os que podem votar “não” mas têm algum receio quanto a mudanças, de que algo melhor é possível. Desta forma, no dia 5 de outubro os chilenos vão às urnas, e após horas de tensão (ainda mais que se acreditava na tentativa do governo fraudar a votação), a opção “não” é a vencedora com 55,99% dos votos válidos. O plebiscito que a ditadura convocara para se legitimar, acabava por derrotá-la.
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Mas foi, realmente, uma derrota da ditadura? Uma análise mais distanciada no tempo permite dizer, ironicamente, que não. E isso não se deve ao fato da transição ter se dado nos termos da constituição aprovada no fraudado plebiscito de 1980, pois a mobilização popular foi decisiva na vitória do “não” em 1988: sendo assim, naquele momento o povo é que venceu.
Um dos aspectos no qual a ditadura se saiu vitoriosa foi que, ao final, Augusto Pinochet “saiu bem na foto” para muitos chilenos: o democrata-cristão Patrício Aylwin, candidato da Concertación, foi eleito presidente no final de 1989 e Pinochet entregou o cargo a ele sem problemas (ao contrário do general Figueiredo no Brasil). A imagem construída pela campanha do “sim” um ano antes não perdia a validade para os conservadores, que viam Pinochet como o general que havia “salvo” o Chile de uma “ditadura comunista” (qualquer semelhança com os discursinhos pró-1964 no Brasil, não é mera coincidência) e que, no momento em que o povo não mais o queria no governo, deixava o Palácio de La Moneda sem oferecer resistência. (Repito: depois de eliminar boa parte da oposição, é muito fácil ser “democrata”.)
Outro aspecto no qual a ditadura chilena se saiu vencedora, foi que Pinochet deixou o governo mas não o poder: o general comandava o Exército desde antes do golpe de 1973 (nomeado por Allende, ou seja, além de golpista e genocida era também um traidor) e só deixou o posto em 1998 para assumir o cargo de senador vitalício, que a Constituição destinava aos ex-presidentes pouco importando se eleitos democraticamente ou não.
O que se explica pelo fato da constituição (que vigora até hoje no país) ser aquela de 1980. O cargo de senador vitalício foi extinto em 2006, mas ainda assim o Chile apresenta esta aberração: um regime democrático sob uma constituição escrita durante um regime autoritário. Para se ter uma ideia, o Brasil, que é o “lanterna” no quesito “memória” e ainda tem muitos resquícios da ditadura, é regido por uma constituição que pode ter qualquer defeito, mas foi redigida por um Congresso Constituinte eleito após a saída dos militares do governo e promulgada no mesmo 5 de outubro de 1988 no qual os chilenos votaram “não”.
Se por um lado, Pinochet acabou de certa forma pagando por seus crimes (passou mais de um ano sob prisão domiciliar em Londres devido a um pedido de extradição feito pelo juiz espanhol Baltasar Garzón, e posteriormente sofreu processos no Chile) e ao morrer em 10 de dezembro de 2006 (justamente no Dia Internacional dos Direitos Humanos) não recebeu honras de Estado, por outro ele não perdeu a admiração pública de muitos chilenos (obviamente, dos conservadores). No Brasil (que, como já falei, é “lanterna” em termos de memória), são raros os políticos de direita que se assumem como tal e defendem a ditadura, ao contrário do que acontece no Chile.
Inclusive foi assim, de forma “autêntica”, que em janeiro de 2010 a direita chilena impôs à Concertación sua primeira grande derrota, quando Sebastián Piñera foi eleito presidente após 20 anos de governo da coalizão de centro-esquerda. Foi a primeira vez em 52 anos que um político de direita chegou democraticamente à presidência do Chile: a última vitória conservadora no país se dera não nas urnas, mas pela força das armas, em 11 de setembro de 1973.